Rebelião das massas.

A rebelião das massas: a origem dos movimentos sociais

É bastante fácil fazer surgir sentimentos na alma das multidões, mas é dificílimo refreá-los. Desenvolvendo-se, convertem-se em forças que não são possíveis dominar
Gustave Le Bon 1895

As massas e a história
Descontando-se os inúmeros e praticamente incontáveis levantes de massas que ocorreram na história da humanidade, sob o ponto de vista da época contemporânea, pode-se fixar sua erupção na política a partir de dois eventos muito próximos. Um deles, a Boston Tea Party (A Festa do Chá em Boston, que ocorreu em 1773), um tanto antes da eclosão da Revolução Americana (1776-1783); o outro, a Queda da Bastilha, de 14 de julho de 1789, foi responsável pelo desabamento de uma monarquia que já existia há mais de 13 séculos na França.


Queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789 Foto: Getty Images
Queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789
Foto: Getty Images

Ambos os acontecimentos são marcos da espetacular ação das massas revolucionárias e da entrada delas definitivamente no universo da política, do qual por séculos estiveram ausentes. Esta, ao longo dos tempos, tinha sido monopolizada por aristocratas, fidalgos e plutocratas em geral, personagens das elites do seu tempo que definiam os destinos dos povos sem fazer-lhes consulta sequer.


Desta feita, era o homem comum, uma multidão de anônimos, quem arrombava as portas daquele Olimpo, obrigando-o a ouvir e a atender suas demandas. O filósofo Hegel, em carta a um amigo, registrou esta nova força que punha o mundo em andamento, afirmando:

Eu me oriento em que o Weltgeistes (O Espírito do Mundo) deu a palavra de ordem para o avanço: tal palavra de ordem é obedecida sem hesitação; esse ser se movimenta como uma falange encouraçada, fechada, irresistivelmente e com um movimento tão imperceptível quanto o sol quando se move, para frente, venha o que vier...

Carta a Niethammer

Esta erupção das massas generalizou-se ainda mais por ocasião da Revolução de 1848 - a "Primavera dos povos" -, movimento extraordinário que fez tremer quase que todas as capitais e cidades mais importantes da Europa, com reflexos inclusive na América Latina.

Para Elias Canetti, autor de um livro clássico sobre o assunto, Masse und Macht (Massa e Poder, 1960), esta excitação e presença das multidões nas ruas protestando ou insurgindo-se resultou da libertação do controle que a religião exercia sobre elas até a eclosão da Revolução Francesa de 1789. Desde então foram incontáveis os "estouros" que ocorreram em várias partes do mundo e que, tudo indica, não mais cessarão.


Marx exalta as massas
Karl Marx foi o primeiro filósofo moderno a captar as potencialidades transformadoras da multidão em marcha. Percebeu que a elas, e somente a elas, e não aos heróis das classes tradicionais, cabia "mudar o mundo", conduzindo-o para uma etapa superior da história da humanidade. Propôs, então, uma aliança entre os pensantes, os filósofos, os intelectuais, com a maioria sofredora, o proletariado moderno. Afinal, eram "as massas quem fazem a história", assegurou.

 Foto: Reprodução Foto: Reprodução

Este entusiasmo arrefeceu um tanto, não do lado de Marx e de seu companheiro Engels, mas de larga parte da opinião pública em geral quando dos dramáticos episódios provocados pela Comuna de Paris, ocorridos em março de 1871. Naquela oportunidade, milhares de trabalhadores da capital da França, homens, mulheres e crianças, levantaram-se em armas contra o governo de Versalhes que fizera concessões humilhantes aos alemães vitoriosos na Guerra Franco-Prussiana (1870).


A capital francesa ficou parcialmente destruída, com os prédios e monumentos incendiados ou postos abaixo. Para Marx, a Comuna, ainda que vencida e esmagada, representou, pela primeira vez na história, ainda que em esboço, o que certamente viria a ser um governo do proletariado.

Em Paris, a Massa tornara-se Poder mesmo que fora por apenas 72 dias. Ela "tomara o céu de assalto", segundo ele.

O sonho, ainda que inesperado para a maioria dos seguidores de Marx, paradoxalmente se fez realizado não na desenvolvida e civilizada Europa Ocidental, como ele previra, mas na bárbara Rússia dos czares autocratas e dos mujiques miseráveis. Lenin, líder bolchevique, assegurou que, a partir de 25 outubros de 1917, as massas conduzidas por seu partido estavam definitivamente no poder.


São Petersburgo e Moscou transformaram-se em palcos de enormes manifestações, marchas se sucediam, turbilhões humanos varriam os veneráveis logradouros tanto da capital da Rússia asiática como da bela cidade de Pedro. Vendo aquele espetáculo, com milhares de pessoas gritando slogans ou simplesmente andando, o linguista Mikhail Bakhtin desenvolveu na década de 1920 o conceito de carnavalização e polifonia da obra literária. Diversas vozes nela se fazem presentes como se fora nos ruidosos tempos das feiras medievais.


A origem socioeconômica das massas
A presença das massas, das extraordinárias multidões humanas, é um fenômeno mais ou menos recente na história. Anteriormente à Revolução Industrial, a população era majoritariamente rural. Encontrava-se espalhada pelo campo, vivendo em pequenas aldeias ou vilarejos isolados, com escasso número de habitantes. Não tinha como haver significativas concentrações como as que começaram a emergir nos conglomerados urbanos da Europa Ocidental entre 1750 e 1850. A chave para se entender a impactante presença delas, das multidões, têm como origem tecnológica a máquina a vapor, surgida em 1765.


O invento de James Watt teve como efeito direto a possibilidade de se instalar fábricas nos cinturões das cidades, liberando-as da necessidade de serem montadas à beira de rios ou riachos, muitos deles distantes do mercado consumidor. Com os engenhos veio a mão-de-obra. Milhares de operários começaram a se concentrar ao redor delas, tornando as fábricas o centro da sua vida econômica e social.

Na esteira delas, ampliou-se o setor de prestação de serviços, o comércio com suas lojas, os armazéns, as galerias, o setor financeiro com sua rede de bancos, o lazer com seus cafés, restaurantes, teatros etc.


Londres, por exemplo, capital do Reino Unido, quase duplicou a população em apenas um século: eram 527 mil habitantes que saltaram para 1.096.784 quando do primeiro censo oficial em 1801. Não sendo muito diferente, ainda em tempo diverso, do que ocorreu em Nova York, Paris, Berlim, Milão...

Agigantaram-se os centros industrializados no Ocidente igualmente pelo efeito da imigração interna. Milhares de camponeses, de lavradores e de gente do campo em geral, aproveitando-se da dissolução da Ordem Feudal, abandonaram seus sítios natais para tentar a vida nas metrópoles. A soma do crescimento natural com a chegada das levas de mão-de-obra do interior é que possibilitou a proliferação das megaconcentrações urbanas poucas vezes vistas anteriormente na história.

Eis aí a gênese concreta da sociedade de massas


O desconforto com as massas
Para os antigos citadinos causava estranheza e repulsa a repentina mudança que o crescimento econômico e populacional trouxe. Do dia para noite, em Londres, Paris, Berlim, Bruxelas, Milão, Manchester ou Liverpool, os cidadãos tiveram que passar a conviver com estranhos que ninguém sabia de onde vieram. Desconheciam modos urbanos, em geral eram rudes e incivilizados, agrupavam-se nos arrabaldes em meio à sujeira e à doença em casebres medonhos e fétidos, sem higiene alguma, e pareciam não se incomodar em conviver com esgotos ao ar livre. Manifestavam dificuldades de adaptação a uma cidade erguida com pedras e não com troncos e palha como o local de onde vieram.


* Quem por primeiro usou o termo "classes perigosas" foi H. A. Frégier, chefe de polícia francês no livro Des classes dangereuses de la population dans les grandes villes et des moyens de lês rendre meilleures (1840), para definir setores sociais propensos à criminalidade.

O medo passou a ser constante para os habitantes das classes média e alta da cidade. Assaltos e roubos tornaram-se habituais. O crime vicejou como se fora um envenenamento da civilidade. A superpopulação em determinados bairros da periferia acoitava e irradiava ondas pestíferas que enchiam os demais de pavor. Surgiam as classes perigosas (ver Louis Chevalier: Les classes labouriesues et les classes dangereuxes).*


O gênio contra a massa
Coube ao escritor e ensaísta escocês Thomas Carlyle, fortemente influenciado pelo romantismo alemão, com sua Teoria do Grande Homem exposta no livro Heroes, Hero-worship, and the Heroic in History (Sobre Heróis: O heroísmo e a veneração do herói na História, 1841), tratar de contrapor a figura do herói à presença ascendente das massas.


Para ele, o homem comum, a célula da massa, de nada valia a não ser como peão ou degrau para assegurar a projeção do herói e respaldar sua realização. Este é quem fazia a História. A consequência política disto foi sua condenação à democracia, "império do vulgar" na terra, e a consequente apologia da elite.


Vários outros escritores alemães que o antecederam já haviam manifestado sua ojeriza à presença da massa e do ser anônimo que proliferava naquela época, enaltecendo ao revés o Ser Excepcional. Nietzsche, após ter ficado profundamente chocado com os eventos trágicos da Comuna de Paris, foi quem melhor revelou este pavor à multidão, apostando no surgimento futuro de um übermensch, o Super-Homem (Assim falou Zaratustra, 1888). O fenômeno extraordinário que, desprezando as normas de conduta que regiam a maioria, conduziria o destino da humanidade no futuro (Além do Bem e do Mal). O pensamento contra-revolucionário e elitista dele forneceu os argumentos para uma formidável literatura anti-massa que surgiu na transição do século 19 para o 20.


O irracionalismo da massa
Coube ao sociólogo e psicólogo francês Gustave Le Bon, por meio do seu famoso ensaio La psychologie des foules (Psicologia das Multidões, de 1895), demonizar as massas. Para ele, contemporâneo da Comuna de Paris de 1871, os imensos ajuntamentos humanos que se decidiam a marchar e a protestar nada mais eram senão que o irracionalismo posto em ação. Mesmo quando se mobilizavam por uma causa patriótica ou altruísta nada traziam de bom, a não ser a depredação e a desordem. Quando não a subversão social.


E isto, entre outras causas, se devia a metamorfose que ocorre com o indivíduo que adere à multidão contestadora. De alguém tímido, acanhado, normalmente respeitador das regras, ele, imerso em meio aquele mar humano que seguia pela avenida a fora que o tornava um anônimo, libertava-se facilmente das convenções e das noções de civilidade que recebera. Simplesmente sucumbe ao número, à "alma da multidão".

* O criminalista e penalista italiano Scipio Sighele, discípulo de Cesare Lombroso, retomou o tema e o ampliou no seu ensaio La folla delinquente (As classes criminosas, 1891). Não tinha contemplação para com as multidões, qualquer ajuntamento além do razoável tendia inevitavelmente ao comportamento criminoso.

Logo nos deparamos com sua vociferação, destravado, a fúria vai tomando conta dele e não tarda para que junte pedras pelo chão para lançá-las contra as vitrines ou contra as forças policiais. O manso vira fera. A massa, aceleradamente excitada, facilmente regride ao comportamento de uma manada, todos agindo do mesmo modo instintivo sem o amparo de qualquer raciocínio, e o individuo, como que um possesso, retorna ao estado da natureza hobbesiana ("o lobo do homem é o outro homem").*


Massa e Revolução
A surpreendente Revolução Russa de janeiro de 1905 abriu intenso debate em meio ao movimento socialista europeu, particularmente entre os teóricos social-democratas alemães (reformistas ou revolucionários) e os socialistas russos que participaram ativamente dos eventos que varreram o Império do Czar durante aquele ano. Perdida a Guerra russo-japonesa (1904), o governo de Nicolau II, logo em seguida ao massacre do Domingo Sangrento do dia 9 de janeiro (centenas de manifestantes foram fuzilados pela Guarda Cossaca em frente ao palácio de Inverno do Czar, em São Petersburgo), se viu frente a uma violenta contestação.


Não houve bairro proletário da Rússia, pelo menos nos grandes centros urbanos, que não tenha saído em peso às ruas para demonstrar sua raiva. Greves espontâneas eclodiram por todos os lados. As queixas pela inépcia militar logo se transferiram para uma generalizada confrontação contra o regime czarista como um todo. Tornou-se o maior levante de massas da Europa de então, muitas vezes superior à Comuna de Paris de 1871.


Rosa Luxemburgo, a famosa social-democrata de esquerda, judia polonesa que militava na Alemanha, exultou com o "espontaneismo" das classes trabalhadoras russas. Vislumbrou naquelas ações o futuro da Revolução Socialista. Concluiu que era delas de onde partiria a iniciativa da derrubada da ordem aristocrática/burguesa e não das direções acomodadas dos partidos socialistas europeus, um tanto paralisados pelos cuidados burocráticos e pela vida rotineira.


Vladmir Lenin chegou a outra conclusão. De nada serviam aquelas explosões espontâneas se não houvesse uma organização disciplinada e hierarquizada que desse um sentido àquilo, que conduzisse aquela enorme energia despertada pela multidão em fúria e disposta a tudo para tomar o poder pela força.


Anos mais tarde, Trotsky, que aderira a Lenin, explicou no seu livro História da Revolução Russa – vol. I, detalhadamente a concepção leninista por meio da metáfora "do vapor e do êmulo". A massa em ebulição gerava uma enorme energia, mas que se não houvesse um êmulo para dirigi-la, toda a pressão gerada em pouco tempo se esvaía. O espontaneismo é fantástico, mas em nada redunda de positivo se não for orientado para um determinado fim (no caso, tomar de assalto o poder). Como os bolcheviques terminaram fazendo em outubro de 1917, na Segunda Revolução.


A massa contra-revolucionária
Certamente que um dos mais desconcertantes fenômenos políticos contemporâneos foi a plena adesão das massas aos movimentos nazi-fascistas que surgiram a partir do final da Primeira Guerra Mundial. Até então as aparições das multidões nas ruas em protesto sempre eram tidas como uma ameaça vinda da esquerda, dos que empunhavam as bandeiras vermelhas ou negras da revolução comunista ou anarquista. Eis que, acaudilhadas por Mussolini na Itália e por Hitler na Alemanha e por epígonos deles em outras partes do mundo, as massas postaram-se em marcha a serviço da contra-revolução. Abrigaram-se sob as bandeiras da antidemocracia e do anticomunismo para a mais total perplexidade dos teóricos da esquerda que até hoje jamais conseguiram elucidar esse mistério.

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