2 de julho: o 7 de setembro da Bahia

2 de julho: o 7 de setembro da Bahia

Por Assis Ribeiro

2 de Julho: Data Nacional
Paulo Costa Lima
De Salvador (BA)
O Brasil pouco sabe sobre o '2 de Julho' e bem que deveria saber. O que aconteceu na Bahia no dia 2 de Julho de 1823 foi decisivo para todos os brasileiros.
Foi quando o Exército Libertador, tendo à frente o Batalhão do Imperador entrou finalmente na cidade que havia sido sitiada durante meses, sendo recebido com flores e homenagens pela população. Os portugueses, cerca de 4500 homens, haviam abandonado a cidade poucas horas antes, por mar.
Durante muitas décadas firmou-se o entendimento errôneo de que a data representava a 'Independência da Bahia'. Ledo engano. O correto é celebrar a Independência do Brasil na Bahia. Existe neste momento uma proposta em andamento no Congresso Nacional (de autoria da Deputada Alice Portugal, PCdoB-Ba) para a aprovação do '2 de Julho' como data nacional. Nada mais justo!

Basta lembrar que o exército dessa guerra, cerca de 10.000 homens, era composto por soldados vindos de muitas províncias - do Ceará e de Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Sergipe, mas também fluminenses, mineiros e paulistas, além dos baianos, é claro, muitos deles filhos da África.
Na verdade, trata-se do nascimento do Exército brasileiro - um fato também pouco celebrado - e do batismo de fogo do seu patrono, o futuro Duque de Caxias.
A cena do 7 de setembro só adquire sua plenitude de sentido com a bravura popular que foi demonstrada na Bahia. Um exército inicialmente comandado por um francês, Labatut, mas que chega ao final do conflito sob as ordens de um brasileiro, Lima e Silva.
O '2 de Julho' é um novelo de narrativas. No plano de fundo, a "narrativa histórica", ou seja, os eventos memoráveis da entrada do Exército Libertador em Salvador no dia 2 de Julho de 1823, que por sua vez se inserem no processo mais amplo da guerra propriamente dita e de seus antecedentes.
Em torno desse núcleo vão se enovelando 185 anos de festividades de rememoração e de interação criativa com esses eventos originais e seus símbolos. E aí entra em cena uma outra dimensão da festa, a rica apropriação que dela fez o povo da Bahia, construindo uma espécie de civismo caboclo.
Fôssemos mais próximos de Hollywood e já teríamos inúmeros filmes projetando mundialmente a temática. Onde encontrar episódios mais marcantes? Uma mártir religiosa (Joana Angélica), batalhões voluntários, escravos lutando por liberdade, uma sertaneja que vira soldado, batalhas navais e campais...
Essa sertaneja que vira soldado - a ilustre Maria Quitéria de Jesus - está a pedir urgente uma mini-série nacional. Uma mulher, entre 25 e 30 anos que viaja cerca de oitenta quilômetros para se alistar, vestida com as roupas do cunhado, de quem se apropria do nome, passando a ser chamada de soldado Medeiros. Aparentemente casa durante o conflito e o marido morre.
Recebe menção explícita de bravura do General Lima e Silva e após a guerra vai ao Rio de Janeiro para ser condecorada por D. Pedro I. Lá no Rio chama a atenção da historiadora Maria Graham, amiga de Leopoldina, que a descreve como uma mulher feminina, sem nada "que desabone sua moral". Sabemos também através desta autora que Maria Quitéria se alimentava de forma comedida, ovos e peixe, e que também enrolava um cigarro de palha após as refeições. Vai ser um sucesso a mini-série!
A mistura de festa popular e comemoração cívica que preenche as ruas de Salvador por ocasião do '2 de Julho' assumiu ao longo dos anos a complexidade de um poli-festival: cívico, político, cultural, religioso e festeiro (há uma longa tradição de batuques, bailes e bandos anunciadores).
Na verdade, o cortejo que sai pelas ruas de Salvador é apenas um dos eventos - a rede festiva se espalha por diversos municípios convocando identidades múltiplas, do vaqueiro ao índio, e antigamente também acontecia em vários bairros e datas distintas, havendo dessa forma '2 de Julho' em agosto, setembro... (uma comunidade de Salvador ainda mantém essa tradição).
Como entidade do panteão afro-brasileiro, o Caboclo recebe atenção especial nesse dia - visitação, bilhetes colocados nos carrinhos polarizam o cortejo, festas de santo - mostrando como os dois universos se interconectaram. Do lado católico há também interação significativa. Basta cantar o Hino ao Senhor do Bonfim: "Glória a Ti neste dia de glória, Gloria a ti redentor que há cem anos. Nossos pais conduziste à vitória, pelos mares e campos baianos...", estamos em pleno '2 de Julho'; o hino é de 1923.
Como festival político tem uma força incrível. Em época de repressão sempre precisou ser controlado com mão de ferro - tentando neutralizar a formação de novas lideranças carismáticas. Nos dias de hoje, de democracia recente, qual a legenda que arriscaria ficar de fora?
Mas vejam que não é coisa nova. Os abolicionistas costumavam anunciar alforrias justamente nesta data. Em 1973, sesquicentenário da festa, quem foi o convidado de honra? O presidente-ditador Garrastazu Médici.
Ou seja, a sacralidade da ocasião, a sacralidade do Caboclo, digamos assim, sempre foi disputada palmo a palmo. Mas de onde vem? Ora, vem do valor que a população atribui à própria festa, seu peso histórico - nosso atestado de nascimento como sociedade política - e graças ao apelo dos seus símbolos, uma resultante da interação centenária com as representações construídas socialmente.
Como diz o pesquisador João Reis, "o Caboclo pode ser visto como uma representação baiana da utopia popular, totem da justiça e da abundância. Afinal, ele representa ou não a vitória sobre a tirania e o estabelecimento do império da liberdade?" Mas também assume a feição de uma entidade com a qual se negocia a difícil sobrevivência cotidiana - Cf. prefácio de Algazarra nas Ruas de Wlamira Albuquerque, ambos, livro e prefácio, imprescindíveis.
A potencialização da festa precisa rimar com essa vocação libertária do civismo caboclo. Deve, portanto, evitar o caminho da homogeneização (já temos o exemplo do Carnaval). Deve levar em conta o grande potencial de atrativo histórico e cultural e pensar em termos de um verdadeiro ciclo. Mais importante ainda: deve se apoiar em programas educacionais de peso - embora muito pouco exista nessa direção.

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