2 de julho: o 7 de setembro da Bahia
2 de julho: o 7 de setembro da Bahia
Enviado por luisnassif, sab, 02/07/2011 - 09:02
Por Assis Ribeiro 
2 de Julho: Data Nacional
Paulo Costa Lima
De Salvador (BA)
De Salvador (BA)
O Brasil pouco sabe 
sobre o '2 de Julho' e bem que deveria saber. O que aconteceu na Bahia 
no dia 2 de Julho de 1823 foi decisivo para todos os brasileiros.
Foi quando o 
Exército Libertador, tendo à frente o Batalhão do Imperador entrou 
finalmente na cidade que havia sido sitiada durante meses, sendo 
recebido com flores e homenagens pela população. Os portugueses, cerca 
de 4500 homens, haviam abandonado a cidade poucas horas antes, por mar.
Durante muitas 
décadas firmou-se o entendimento errôneo de que a data representava a 
'Independência da Bahia'. Ledo engano. O correto é celebrar a 
Independência do Brasil na Bahia. Existe neste momento uma proposta em 
andamento no Congresso Nacional (de autoria da Deputada Alice Portugal, 
PCdoB-Ba) para a aprovação do '2 de Julho' como data nacional. Nada mais
 justo!
Basta lembrar que o 
exército dessa guerra, cerca de 10.000 homens, era composto por soldados
 vindos de muitas províncias - do Ceará e de Pernambuco, Alagoas, 
Paraíba e Sergipe, mas também fluminenses, mineiros e paulistas, além 
dos baianos, é claro, muitos deles filhos da África.
Na verdade, trata-se
 do nascimento do Exército brasileiro - um fato também pouco celebrado -
 e do batismo de fogo do seu patrono, o futuro Duque de Caxias.
A cena do 7 de 
setembro só adquire sua plenitude de sentido com a bravura popular que 
foi demonstrada na Bahia. Um exército inicialmente comandado por um 
francês, Labatut, mas que chega ao final do conflito sob as ordens de um
 brasileiro, Lima e Silva.
O '2 de Julho' é um 
novelo de narrativas. No plano de fundo, a "narrativa histórica", ou 
seja, os eventos memoráveis da entrada do Exército Libertador em 
Salvador no dia 2 de Julho de 1823, que por sua vez se inserem no 
processo mais amplo da guerra propriamente dita e de seus antecedentes.
Em torno desse 
núcleo vão se enovelando 185 anos de festividades de rememoração e de 
interação criativa com esses eventos originais e seus símbolos. E aí 
entra em cena uma outra dimensão da festa, a rica apropriação que dela 
fez o povo da Bahia, construindo uma espécie de civismo caboclo.
Fôssemos mais 
próximos de Hollywood e já teríamos inúmeros filmes projetando 
mundialmente a temática. Onde encontrar episódios mais marcantes? Uma 
mártir religiosa (Joana Angélica), batalhões voluntários, escravos 
lutando por liberdade, uma sertaneja que vira soldado, batalhas navais e
 campais...
Essa sertaneja que 
vira soldado - a ilustre Maria Quitéria de Jesus - está a pedir urgente 
uma mini-série nacional. Uma mulher, entre 25 e 30 anos que viaja cerca 
de oitenta quilômetros para se alistar, vestida com as roupas do 
cunhado, de quem se apropria do nome, passando a ser chamada de soldado 
Medeiros. Aparentemente casa durante o conflito e o marido morre.
Recebe menção 
explícita de bravura do General Lima e Silva e após a guerra vai ao Rio 
de Janeiro para ser condecorada por D. Pedro I. Lá no Rio chama a 
atenção da historiadora Maria Graham, amiga de Leopoldina, que a 
descreve como uma mulher feminina, sem nada "que desabone sua moral". 
Sabemos também através desta autora que Maria Quitéria se alimentava de 
forma comedida, ovos e peixe, e que também enrolava um cigarro de palha 
após as refeições. Vai ser um sucesso a mini-série!
A mistura de festa 
popular e comemoração cívica que preenche as ruas de Salvador por 
ocasião do '2 de Julho' assumiu ao longo dos anos a complexidade de um 
poli-festival: cívico, político, cultural, religioso e festeiro (há uma 
longa tradição de batuques, bailes e bandos anunciadores).
Na verdade, o 
cortejo que sai pelas ruas de Salvador é apenas um dos eventos - a rede 
festiva se espalha por diversos municípios convocando identidades 
múltiplas, do vaqueiro ao índio, e antigamente também acontecia em 
vários bairros e datas distintas, havendo dessa forma '2 de Julho' em 
agosto, setembro... (uma comunidade de Salvador ainda mantém essa 
tradição).
Como entidade do 
panteão afro-brasileiro, o Caboclo recebe atenção especial nesse dia - 
visitação, bilhetes colocados nos carrinhos polarizam o cortejo, festas 
de santo - mostrando como os dois universos se interconectaram. Do lado 
católico há também interação significativa. Basta cantar o Hino ao 
Senhor do Bonfim: "Glória
 a Ti neste dia de glória, Gloria a ti redentor que há cem anos. Nossos 
pais conduziste à vitória, pelos mares e campos baianos...", estamos em pleno '2 de Julho'; o hino é de 1923.
Como festival 
político tem uma força incrível. Em época de repressão sempre precisou 
ser controlado com mão de ferro - tentando neutralizar a formação de 
novas lideranças carismáticas. Nos dias de hoje, de democracia recente, 
qual a legenda que arriscaria ficar de fora?
Mas vejam que não é 
coisa nova. Os abolicionistas costumavam anunciar alforrias justamente 
nesta data. Em 1973, sesquicentenário da festa, quem foi o convidado de 
honra? O presidente-ditador Garrastazu Médici.
Ou seja, a 
sacralidade da ocasião, a sacralidade do Caboclo, digamos assim, sempre 
foi disputada palmo a palmo. Mas de onde vem? Ora, vem do valor que a 
população atribui à própria festa, seu peso histórico - nosso atestado 
de nascimento como sociedade política - e graças ao apelo dos seus 
símbolos, uma resultante da interação centenária com as representações 
construídas socialmente.
Como diz o 
pesquisador João Reis, "o Caboclo pode ser visto como uma representação 
baiana da utopia popular, totem da justiça e da abundância. Afinal, ele 
representa ou não a vitória sobre a tirania e o estabelecimento do 
império da liberdade?" Mas também assume a feição de uma entidade com a 
qual se negocia a difícil sobrevivência cotidiana - Cf. prefácio de Algazarra nas Ruas de Wlamira Albuquerque, ambos, livro e prefácio, imprescindíveis.
A potencialização da
 festa precisa rimar com essa vocação libertária do civismo caboclo. 
Deve, portanto, evitar o caminho da homogeneização (já temos o exemplo 
do Carnaval). Deve levar em conta o grande potencial de atrativo 
histórico e cultural e pensar em termos de um verdadeiro ciclo. Mais 
importante ainda: deve se apoiar em programas educacionais de peso - 
embora muito pouco exista nessa direção.
