Ofício das rezadeiras

CRENÇA POPULAR

Ofício das rezadeiras resiste mesmo com avanço da Medicina

Cidades do sertão concentram ainda grande número de mulheres com essa habilidade

por José Avelino Neto - Colaborador
Mariluza Pinheiro é uma das mais emblemáticas rezadeiras de Banabuiú. Com 74 anos, exerce a atividade para tratar de problemas como torções e rompimento de nervos no pescoço ( Fotos: José Avelino Neto )
José Cordolino Dultra tem 79 anos e detém uma lucidez que impressiona. Na hora de pedir a saúde por meio da oração, então, a concentração é ainda maior
Banabuiú. A professora Juliana Nara Cavalcante, 28, tem quatro filhos e todos eles, algum dia, já foram para uma das quase dez rezadeiras que ainda vivem neste Município da região central cearense. "Uma vez, a minha filha mais velha começou a vomitar e ficar com o corpo mole. Não tinha nenhuma reação. Minha irmã se desesperou dizendo que ela iria morrer. Eu levei para avó do meu esposo. Ela rezou duas vezes e a menina saiu de lá andando", relata a professora.
A medicina evoluiu, as técnicas de tratamento são outras e a modernidade do novo século trouxe novas formas de combater doenças em tempos recordes. Mas levar o filho para uma rezadeira é um hábito que permanece vivo na cultura do cearense, principalmente em cidades do interior, onde a tradição é ainda mais forte.
Quixadá, Boa Viagem, Quixeramobim e Canindé, são exemplos de cidades que ainda concentram um grande número de mulheres com esta habilidade. Muitas são reservadas. Outras estão com idade tão avançada que mal conseguem falar. Mas ainda rezam.
Quebranto
Em Banabuiú, a prática de levar um filho para "tirar o quebranto", sobrevive desde o tempo em que a cidade foi emancipada. No fim da tarde, é comum vê-las nas calçadas, sentadas em cadeiras de balanço, segurando um ramo de alguma planta. Tem sempre uma delas impondo a mão sobre uma criança, deslizando folhas sobre a face dos pequenos e fazendo orações em profunda reflexão. Mariluza Lobo Pinheiro é uma das mais emblemáticas da cidade. Com 74 anos, ela exerce a atividade para tratar de problemas como torções, rompimento de nervos no pescoço e para eliminar sintomas do mau olhado, conhecido como quebranto.
"Uma vez, a menina chegou quase morta. Eu fiz meus pedidos a Deus e ela acordou. Tem vez que uma só oração dá certo. Noutras ocasiões, é preciso orar três vezes", explica. Com essa espiritualidade, Mariluza tem mais de 30. A intuição foi passada pelo pai quando estava prestes a morrer. "Faço isso até hoje, em qualquer pessoa" , disse.
Graça
O pai falecido da filha de Marília Batista era médico. Mas sempre que a pequena estava doente não era para o hospital que ela levava a menina. Era para casa da Mariluza. "Até cinco anos, a Mariluza pediu a graça de Deus sobre minha filha porque dizia que a menina tinha muito mau olhado. Uma vez, ela pegou um ramo e passou na garota. O ramo estava verde e quando ela terminou, o ramo estava seco, estalando". Em Quixadá, a 170 km de Fortaleza, José Cordolino Dultra tem 79 anos e detém uma lucidez que impressiona. Na hora de pedir a saúde por meio da oração, então, a concentração é ainda maior. Há quase 60 anos ele é procurado pelos moradores da região para exercer os poderes de suplicar a cura.
Ele garante que problemas de engasgo são o mau que mais combate. "Teve uma vez que veio uma menina engasgada com uma espinha de peixe de Ibaretama. Foi ao hospital de lá e no daqui de Quixadá e não deu certo. Quando foram transferir pra Fortaleza, tiraram ela do hospital e vieram aqui. Comigo, ela cuspiu a espinha pra fora".
O dom, como conta, tem que ser desenvolvido, e teve a ajuda do pai e de um amigo. De lá pra cá, garante: "Eu livrei mais de 500 pessoas de ir para Fortaleza com negócio de engasgo. A pessoa chega aqui. Não tem hora, não. Se chegar quatro horas da manhã, eu rezo", disse.
Para o doutor em antropologia e pesquisador da cultura das rezadeiras, Adalberto de Paula Barreto, a tradição ainda se mantém forte. "Faz parte da cultura popular e está arraigado no nosso imaginário, na mesma linha de quando você pede a bênção e a pessoa responde Deus te dê saúde, fortuna e felicidade".
Atavismo
Para Adalberto, as tradições remetem a figuras atávicas, do passado, que eram responsáveis por funções de tratamento de problemas socioculturais, espirituais e biológicos. As orações vêm de influências católicas e da cultura afro brasileira.
"A rezadeira é um sincretismo dos pajés com os rituais, rezas católicas e, dependendo da região, com sincretismo afro. Aqui no Ceará é mais o indígena e católico", pontua. Ele diz que há uma diversidade nos dons.
Restrição
Em seus levantamentos, Canindé se mostrou como a cidade da região com o maior número de rezadeiras. Por lá, ele já catalogou 200 delas. Mas, com o tempo, Adalberto acredita que o número diminua. "Elas são bem velhinhas e a tendência é diminuir. Tem umas que conseguem repassar para os netos, mas outras, não", afirma ele, que acredita piamente na intercessão espiritual. "Esse é o primeiro recurso de quem está doente".
Para o Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec) não existe nenhuma restrição ou consideração negativa quanto à prática de rezas e sugestões de remédios naturais de rezadores pelo Interior. A igreja não se manifesta sobre o assunto.
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Pratica sobrevive pela oralidade
Lourdes Macena
Dra. Em Artes do IFCE, campus de Fortaleza
Desde os mais remotos tempos que homens e mulheres se valem do hábito de utilização de cura pelo uso de benzeduras e ervas a partir da ação generosa das conhecidas rezadeiras, benzedeiras, curadores e benzedores. Enfatizo a generosidade considerando que boa parte destes não cobra para fazer suas curas, pois geralmente quem os procura são pessoas de baixa renda. Muitas vezes, sobrevivem das trocas comunitárias recebendo agrados do que o outro pode lhe dar sem formato de pagamento, mas, sim, como uma maneira de reconhecimento pelo ato de cuidar e tratar o outro.
Essas práticas sobrevivem aos tempos pela oralidade. São ofícios repassados e recebidos de geração a geração por meio de escolhas espirituais onde o repasse do saber pode ser para um parente ou não. Destes exige-se apenas um perfil solidário e o dom divino possuidor de uma áurea reconhecida por quem vai repassar o saber.
As rezadeiras acreditam serem guardadores de ação ancestral de ligação do doente com o divino, sendo eles mediadores. Creem que possuem dom repassado pelo sagrado e que o encontro místico para a cura ocorre por meio destes.
A reza é o principal elemento de cura das rezadeiras e benzedeiras utilizando na maioria das vezes quatro folhas de peão roxo, jaculatórias e gestos sagrados envolvendo um sentido de obrigação religiosa através da devoção e entrega emocional.
Do que conheço da prática das rezadeiras, posso dizer que a cura envolve fé democrática considerando que não se exige que aquele que necessita da reza tenha que fazer parte desta ou daquela religião. É necessária apenas a crença na existência de um ente supremo como motor motivador da vida humana.
Apesar do pensamento equivocado de que estas práticas de cura sobrevivem apenas no interior cearense, encontramos estas vivas e bem presentes pelos diversos bairros desta capital.
A valorização das práticas vem contribuindo para estreitar laços entre saberes formais e informais em projetos na área da saúde.
Estes homens e mulheres que rezam e curam, que se utilizam de práticas comunitárias nativas se valendo também do conhecimento de ervas e do que a natureza lhes ensinam no âmbito da cura do corpo pelo saber imaterial estão espalhados por este Ceará, numa profusão de fé e generosidade com o outro.

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