Mestre João José Reis

O sonho da Bahia muçulmana

Organizada por africanos escravos e libertos, a Revolta dos Malês deixou Salvador frente a frente com o Islã

João José Reis
  
  • Na madrugada de 25 de janeiro de 1835, aconteceu em Salvador uma rebelião organizada por muçulmanos, principalmente de origem iorubá, chamados nagôs na Bahia. A predominância nagô foi traduzida no nome dado ao movimento: Revolta dos Malês – o termo malê deriva de imale, que significa muçulmano em iorubá.
    Participaram cerca de 600 combatentes, que deixaram a cidade em polvorosa por várias horas. Durante o combate, 73 rebeldes e dez oponentes foram mortos. Vencidos, dezenas de africanos foram condenados a penas de açoite, prisão, degredo e morte.
    Salvador tinha na época em torno de 65.000 habitantes, dos quais cerca de 42% eram escravos. Entre a população não escrava, a maioria era também de africanos e seus descendentes nascidos no Brasil. Os brancos não passavam de 22%. Entre os escravos, 63% eram nascidos na África, chegando a 80% no Recôncavo. A maioria dos africanos era nagô, cerca de 30%, bem como a maioria entre os muçulmanos.
    Na escravidão urbana, os cativos tinham alguma autonomia. Em geral, transitavam por toda a cidade, a cumprir tarefas para seus senhores ou a vender a força de trabalho. Muitos escravos sequer moravam na casa senhorial: eram negros de ganho. E aqueles que trabalhassem duro e poupassem muito podiam comprar sua alforria após cerca de dez anos. Os libertos representavam aproximadamente 7% da população de Salvador.
    Africanos escravos e libertos desempenhavam as mesmas tarefas e às vezes moravam nas mesmas casas. No trabalho de rua, organizavam-se em grupos chamados cantos, que reuniam os da mesma nação, chefiados por um “capitão”. Assim associados, enfrentavam o trabalho diário e desenvolviam laços de solidariedade que se desdobravam em ações políticas. Esses grupos de trabalho foram essenciais na mobilização para a revolta.
    Naquele ano, aliados a outros que vieram da região dos engenhos, escravos e libertos da cidade decidiram rebelar-se. Não sabemos detalhes do que pretendiam se fossem vitoriosos. Certo era que a Bahia malê seria uma nação controlada pelos africanos, tendo à frente os muçulmanos, talvez um califado ortodoxo ou um Estado no qual o paganismo predominante entre os africanos fosse tolerado. De toda maneira, não foi um levante sem direção, um espasmo social produto do desespero, mas um movimento dirigido à tomada do poder.
    Os malês foram os responsáveis por planejar e mobilizar os insurretos. Suas reuniões eram uma mistura de exercícios corânicos (leitura e escrita), rezas e conspiração. O próprio levante aconteceu no final do mês sagrado do Ramadã, o nono do calendário muçulmano. Os malês foram às ruas com roupas islâmicas e amuletos protetores feitos de cópias de rezas, de passagens do Alcorão e de bênçãos de líderes espirituais.
    Cientes de que constituíam minoria na comunidade africana, os malês não hesitaram em convidar escravos não muçulmanos para o levante. E outro elemento de mobilização entraria em ação: a identidade nagô. Em 1835, quase 80% dos réus escravos eram nagôs.
    A origem desses africanos permite mapear a memória da África nos depoimentos dos suspeitos de rebeldia. Os interrogatórios não deixam de ser um registro problemático da memória. Isso porque são documentos produzidos sob constrangimento policial; em alguns casos, sob tortura. Havia, ainda, a barreira da língua, porque nem todos eles eram fluentes no português, e muito menos os interrogadores no idioma dos africanos. O escravo Joaquim, por exemplo, declarou não saber falar a “língua de branco”. O trabalho de transcrição das falas africanas pelo escrivão da polícia era uma aproximação do que fora realmente dito, ou o que ele entendia, e, muitas vezes, o que queria ter ouvido.
    Acima, um marabu muçulmano no Senegal usando amuletos, em 1780. Os africanos de religião islâmica foram os responsáveis pela organização e mobilização de uma das mais importantes revoltas negras do Brasil.
    Acima, um marabu muçulmano no Senegal usando amuletos, em 1780. Os africanos de religião islâmica foram os responsáveis pela organização e mobilização de uma das mais importantes revoltas negras do Brasil.
    Temos assim testemunhos que passaram por diversos filtros, inclusive pelo do tempo transcorrido desde que os interrogados deixaram a terra natal. O que podemos perceber são apenas vestígios da África. Além disso, dois tipos de África vêm à tona nessas falas: a dos depoentes antes da travessia atlântica e a que foi refeita no Brasil. A África já aparece na primeira indagação feita sistematicamente aos presos: “Diga seu nome, nação, se escravo de quem, ocupação e onde mora.”
    O nome da pessoa representa uma conexão fundamental do interrogado com sua terra. Na África, o nome tem significados que vão além de uma baliza de identidade pessoal, ou melhor, ele constrói de modo bastante complexo a identidade pessoal. O nome se refere a circunstâncias do nascimento; revela projetos de glória, fortuna, saúde; invoca a posição do indivíduo na ordem familiar, social, religiosa. Os africanos interrogados se conheciam pelos nomes de sua terra, fossem eles tradicionais ou muçulmanos. Um deles declarou: “nomes que usavam na sua terra e com que são conhecidos entre os outros”. Ajadi, Ajahi, Alê, Alade, Dada, Cubi, Gonso, Licutan, Ojou, Sanim – eis alguns dos nomes trazidos da África, ou da África adotados, que encontramos nos depoimentos.
    Esses nomes são quase todos iorubás. Da identidade pessoal à coletiva dava-se um pequeno passo. Na maioria, os réus responderam serem nagôs. Esse dado nos leva aos povos falantes do iorubá, que hoje vivem no sudoeste da Nigéria e no sudeste da República do Benim. Nos anos que antecederam o levante de 1835, essa região sofria conflitos generalizados. No poderoso reino de Oió, um grande contingente dos habitantes tinha abraçado o Islã, se reunindo em aliança com haussás e fulanis na cidade de Ilorin. Vieram de lá os malês da Bahia, capturados em combate ou raptados e vendidos para os traficantes baianos.   
    Devido ao grande número de nagôs, sua língua chegou a ser a franca dos africanos na Bahia. O cozinheiro escravo Luiz, por exemplo, declarou ser “de nação calabar, porém só fala nagô”. Alguns já traziam da África essa habilidade, como José, que disse ser de nação jeje, mas ter sido “criado na terra de nagô”.
    No entanto, ser nagô na Bahia não apagaria completamente memórias dos grupos a que eles tinham pertencido na África. Embora a maioria dos interrogados respondesse ser apenas nagô, alguns declaram identidades mais precisas. O carregador de cadeira Joaquim de Mattos, por exemplo, respondeu ser de “nação nagô gexá”. Era ijexá, um grupo étnico no leste do território iorubá. A liberta Edum disse ser de “nação nagô bá” e um outro africano interrogado disse ser ela apenas “bá”, significando naturais de Egba, um reino duramente conflagrado por guerras no início da década de 1830. O liberto Lobão Machado foi bem claro: era de nação “nagô ebá”. Francisco, escravo doméstico e comprador, residindo em Salvador havia cerca de seis anos, era iagba (ou yagba), tendo dito “sou da nagô abá”. E o escravo José se disse “nagô jabu”, certamente um cidadão de Ijebu. Nagô remetia à África descoberta no Brasil, enquanto Ijebu, Egba, Yagba, Oió, Ilexá representavam a África deixada do lado de lá do Atlântico. O escravo nagô Antônio, doméstico e carregador de cadeira, resumiu bem a questão quando afirmou: “ainda que todos são nagôs, cada um tem sua terra”.  
                São lembranças da África, além dos depoimentos dos revoltosos, os objetos malês confiscados pela polícia: anéis,tessubás (o rosário malê), abadás, amuletos e escritos árabes. Estes últimos constituíam testemunho, embaraçoso para os brancos, de que os africanos conheciam a escrita, sinal de civilização. Esse foi um dos aspectos de 1835 que mais impressionaram e assustaram os baianos livres. Os escritos árabes davam testemunho de uma crença trazida da África e aqui reproduzida e ampliada, já que o Islã era uma religião em franca expansão entre os africanos na época do levante. Com todas as inovações que decerto sofreu neste lado do mar, o Islã manteve na Bahia muitos de seus fundamentos. O levante de 1835 atesta isso.
    Ao deporem sobre o grau de envolvimento com o Islã, muitos réus se reportaram a suas experiências africanas com a religião que ocupava o banco dos réus. Alguns disseram abertamente ter recebido instrução islâmica na África, inclusive em escolas corânicas. O nagô Pedro, ao ser perguntado sobre um livro e vários manuscritos em árabe encontrados em seu poder, respondeu: “O livro continha rezas de sua terra e os papéis, várias doutrinas cuja linguagem e sua ciência ele sabia antes de vir de sua terra”. Pompeo da Silva, nagô forro, com cerca de 30 anos de idade, “perguntado se ele sabia ou entendia das letras arábicas que usavam os nagôs, disse que tendo aprendido em sua terra pequenino agora quase nada se lembrava”. Pompeo fez da alegada perda da memória um argumento de defesa. Antônio, escravo haussá, pescador, afirmou que conhecia o árabe, mas o usava apenas para escrever “orações segundo o cisma de sua terra”. Ou seja, não escrevia papéis políticos. Acrescentou que, “quando pequeno, em sua terra andava na escola”.
    Alguns africanos foram mais vagos ao falar sobre sua educação muçulmana anterior à chegada à Bahia. Apesar de ser claramente um mestre islamita, Amaro, haussá forro, mentiu: “O dito caderno trata da religião de seu país, porque vira ali semelhante”. “Vira ali” – e assim alegava não ter intimidade com o Islã, nem na África nem na Bahia. Outros, ao contrário, foram afirmativos. O escravo nagô Gaspar, preso com um arsenal de escritos árabes, um tessubá e outros objetos de culto, disse ter sido ele o autor dos papéis, que aprendera o árabe em sua terra, leu trechos do que havia escrito, embora alegasse não saber traduzi-los para o português.
    Em todas essas declarações afloram as lembranças de uma educação muçulmana na África, às vezes de quando esses africanos eram crianças, mesmo no caso dos nagôs, que vinham de um lugar onde o Islã era adotado por uma minoria.
    Outras tradições islâmicas menos ortodoxas atravessaram o Atlântico. O liberto Lobão Machado, quando preso, tinha diversos amuletos protetores em volta do pescoço. Perguntado para que serviam, disse que para protegê-lo do vento. Referia-se aojinn ou anjonu, família de espíritos que acompanhara os africanos ao Novo Mundo. Outros interrogados deram a mesma resposta de Lobão. Pela quantidade de amuletos apreendidos pela polícia, muita gente se protegia desta forma dos espíritos malignos. O escravo haussá Antônio aproveitava a educação muçulmana recebida em sua terra para escrever amuletos na Bahia, que eram vendidos por bom preço a africanos que buscavam se proteger de diversos males espirituais e terrenos.
    As roupas usadas pelos rebeldes também eram signos africanos e, como os escritos, foram confiscadas como prova de pertencimento à “sociedade malê”. Sobre esses abadás, porém, outras lições foram extraídas dos depoimentos. Assim falou o escravo Bento: “Na sua terra são ornadas com elas as gentes grandes, as quais se entendem rei e seus fidalgos”. Nesse depoimento registra-se a etiqueta do vestuário na hierarquia da antiga pátria, a distinguir os poderosos dos homens comuns, sugerindo que, pelo trabalho da memória, estruturas sociossimbólicas e políticas africanas seriam mantidas no Brasil escravista. Aquele tipo de indumentária seria, em 1835, representativo do status de chefe do movimento. As roupas, segundo o escravo Higino, “vêm de onde vêm panos da Costa, e que não se vendem pelas ruas, e que quem veste elas é gente grande quando vai à guerra”.
    O uso do abadá pelos chefes malês tinha raízes na África, uma África que continuava a fazer sentido para os escravos na Bahia. Guerras passadas e revolta recente convergiam na memória desses depoentes. Para eles, uma história africana se desdobrava, embora não se repetisse, em terras baianas. Aliás, os autores desses testemunhos se colocam na ordem hierárquica dos dois mundos: eram pequenos tanto na África como na Bahia. Na Bahia, duplamente: escravos entre os baianos, meros soldados entre os africanos em revolta.
    Os testemunhos dos revoltosos foram usados de forma diferente e às vezes conflitante por interrogadores e interrogados. Para aqueles, possuir os famosos escritos malês ou pertencer aos grupos étnicos identificados com o levante – no caso, principalmente os nagôs – era meio caminho andado na direção de seus objetivos. Mas a África não era usada apenas para esclarecer. Ela era também usada como mecanismo de defesa pelos acusados. Quando diziam que nada sabiam sobre os nagôs, quando inclusive declaravam ter rixas com eles, os interrogados podiam estar mentindo, embora trabalhassem dentro de uma lógica da diferença ditada pela experiência anterior à chegada ao Brasil. Na pressa, podiam até se confundir, como o escravo Joaquim, que disse: “sua nação é nagô, aliás é mina; e que sabe a língua de nagô”. O liberto jeje José da Costa Rudá chegou a criar uma fábula de preferência afetiva ao afirmar ser “avesso aos nagôs e auçás com os quais nunca quis contato nem mesmo com pretas de tal nação, só sim com as de sua nação jeje”.
    A memória da África se encontra, assim, dentro de um campo de poder deflagrado, não aflora como matéria neutra, como não fora neutra a circunstância que provocou sua vinda à tona. Em alguns poucos casos, essa memória seria usada como elemento de afirmação da rebeldia, como se observa no que disse um escravo, mestre malê e líder rebelde, cujo nome cristão era, inadequadamente, Pacífico. Ao ser perguntado qual era seu nome africano, disse ser Bilal, ao que o juiz retorquiu que estava mentindo porque sabia chamar-se Licutan. “Era verdade chamar-se Licutan”, disse, “mas ele podia tomar o nome que quisesse”. E ele escolhera Bilal, nome comum entre africanos muçulmanos, por ser o do muezim negro de Maomé.

    João José Reisé professor da Universidade Federal da Bahia e autor de Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835 (Cia. das Letras, 2003).

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