CINEMA E HISTÓRIA: REPRESENTAÇÕES DO AUTORITARISMO EM MEMÓRIAS DO CÁRCERE DE NELSON PEREIRA DOS SANTOS*


Em uma entrevista, Nelson Pereira dos Santos disse que “[...] a democracia no Brasil é um intervalo comercial”.1 Aproveitando o início de um desses “intervalos”, na década de 1980, o cineasta retomou um projeto acalentado com o sucesso do filme Vidas Secas (1963) – levar às telas o livro Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos.
O projeto de Nelson esbarrou no delicado momento político pelo qual o Brasil passou após 1964 e no envolvimento pessoal do cineasta em outros projetos cinematográficos como El Justicero (1967), Fome de Amor (1968), Azyllo Muito Louco (1969), Como era gostoso o meu francês (1970) e Quem é Beta? (1972), O Amuleto de Ogum (1974), Tenda dos Milagres (1977) e Estrada da Vida (1980). Segundo o cineasta, a demora de vinte anos em retomar o projeto de filmar Memórias “[...] não atrapalhou, significou apren dizado, amadurecimento, eu não poderia fazer tão bem naquela época”.
Perguntado sobre o que encontrou em Graciliano que lhe deu vontade de leválo
novamente às telas, o cineasta assim se manifestou, desmentindo suas alegações
anteriores de não envolvimento do filme com aspectos da política brasileira:

Acho que primeiro o estilo, não é? É um texto organizado, bonito e ao
mesmo tempo simples... as palavras justas, nos lugares certos... e tem
também toda aquela ética de Graciliano, que muito atraía a juventude,
especialmente aqueles que estavam na esquerda. Graciliano foi um
grande crítico do Partido Comunista. Alguns militantes tinham uma
relação direta com os pequenos Stalins dentro do Partido, e Graciliano
era o outro lado, o pensamento libertário e a relação dele com a vida e
com o outro.  

Nada mais político do que discutir os “Stalins” dentro do PCB e a própria atuação do Partido em um momento decisivo para a História do Brasil como a década de 1930. Nessa linha, Nelson construiu um resgate da memória sobre a repressão sofrida pelos comunistas e simpatizantes após a fracassada Intentona de 1935 e discutiu os desmandos dos membros da direção do Partido, os “pequenos Stalins”, que buscavam ditar os caminhos da política e da cultura no seu interior. Além de se apropriar das representações sobre os comunistas para traçar o perfil do Partido, o cineasta também teceu representações sobre os militares, as mulheres, os malandros, os intelectuais, os presos comuns, personagens que viveram o cárcere junto com Graciliano Ramos. Representações que não ficaram apenas no âmbito do governo de Vargas, mas estenderam-se pelos governos militares do pós-1964, para a realidade autoritária e repressiva pela qual o Brasil passou nas décadas de 1960 e 1970 e que estava em vias de abertura no início dos anos 1980.

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