O maxismo e a subjetividade

Sergio Brasil debate o marxismo e a subjetividade

“Marxismo e Subjetividade: como estamos?”, que reproduzimos a seguir, é a exposição que o professor Sergio de Souza Brasil apresentou no o seminário “Marxismo e Subjetividade”, promovido pela Escola de Serviço Social da UFRJ em setembro de 2011. 

“Marxismo e Subjetividade: como estamos?” Esta é uma questão que perpassa o marxismo contemporâneo e, infelizmente, uma questão ainda em aberto. Quando faço uso da categoria de “subjetividade” não quero em momento algum proporcionar um viés psicologista, vale dizer da tentativa de privilegiar o acontecimento que se dá na consciência humana como  uma validação pura e simples do conhecimento. Portanto, quando falo da questão aberta da “subjetividade” no marxismo de hoje ressalto a importância da relação sujeito-mundo. Ou seja, minhas preocupações se colocam na experiência-intervenção que o sujeito tem do mundo que lhe circunda. Em princípio – esta questão ainda não fixada como uma das preocupações vitais do marxismo – tem contato direto com a própria filosofia humanística submersa no pensamento marxiano. Ainda desprezada no marxismo dogmático, a filosofia marxista, mais do que filosofia política, é ontologia. Este recanto da filosofia usualmente confundido com as exacerbações da metafísica clássica, no caso de uma ontologia marxista segue  pela via obrigatória de duas  das onze “Teses contra Feuerbach” (1845): a Tese 2, em que Marx atribui ao pensamento humano uma verdade que é sobretudo prática e, na Tese 8, quando  Marx faz ver que  todos os mistérios que constituem o pensamento metafísico – sobretudo o escolástico - são solucionados sempre pela práxis humana  e sua compreensão. Aliás, a categoria da “práxis” é, ressalto, a forma tensional com que a dialética assegura ao sujeito sua materialidade histórica.

Desta forma, quando pretendo observar que o marxismo dogmático “abandonou” a psicologia e a ontologia, quero deixar claro que a questão da subjetividade é justamente este elo que simbiotiza a psicologia e a filosofia como ponto nevrálgico a ser pensado e refletido. Para tanto, a meu juízo, basta-nos partir da própria categoria de “ser” em Marx. Mais uma vez faço uso da Tese 2 das “Teses contra Feuerbach”.  Marx, ao afirmar enfaticamente que é na “práxis” que o homem demonstra todo o poder e efetividade de seu pensamento, e sendo a “práxis”, em essência, a condição que o “ser” tem, ex anti, de projetar, intervir e transformar radicalmente o mundo, esta categoria (a “práxis”) se constitui, assim, na própria condição essencial do “ser” em Marx. Vale dizer: sou porque sou aquele “ser” da práxis, ou melhor ainda, sou porque sou aquele “ser” que só pode “ser” se realizar a intervenção e a transformação.  Respeitando as nuances, simplifico dizendo que o “ser da práxis” constitui a subjetividade a ser investigada na extensão de todo o pensamento marxista. E amplifico ainda mais esta “subjetividade” ao atribuir ao “ser da práxis” uma “dignidade” moral que só o “ser da práxis” retém: “ser” essencialmente “opus”, isto é, “ser” essencialmente “ato de criação”. E aqui faço valer uma indispensável observação de Marx nos “Manuscritos de 1844”: a de que o “opus”, a obra de criação, traz em sua naturalidade a categoria “trabalho”, ou seja, aquele elemento particular e objetivo, naturalmente determinado, que materializa a criação. Portanto, a subjetividade marxista vai além do “sou porque sou ‘ser da práxis’ ”  e se afirma plenamente em “sou porque sou trabalho ‘opus’ ”.

 A subjetividade como questão marxista se confunde, portanto, com “essência no mundo”, “existência no mundo”, “criação do mundo” e “transformação radical do mundo em circunstâncias historicamente determinadas”. E falando em “circunstancias historicamente determinadas”  dou, impulsivamente, um pulo direto para afirmar que as forças econômicas e políticas de determinação histórica impõem a  especificidade do sujeito e do seu “ser”, e o mesmo se aplica à subjetividade comunista. E é neste sentido que um autor genial e marxista como Bakhtin, especialmente em “Marxismo e Filosofia da Linguagem” chama nossa atenção para esta grande polifonia tensa e dialética que encerra cada subjetividade. Somos, bakhtinianamente falando, múltiplas vozes, múltiplos dizeres em tensão máxima. 

Quanto à especificidade subjetiva produzida pelo capitalismo, Marcuse já nos ofereceu um excelente roteiro de entendimento em “One-dimensional Man”. O caráter doentio da produtividade capitalista impõe uma subjetividade oprimida pelo princípio do desempenho em que o “ser” se reduz a uma racionalidade operacional que o transforma em engrenagem onde se instaura e flui a produção de mais-valia. A subjetividade se transfigura em “ser labor”, onde “labor” exemplifica a mera funcionalidade da ação. A subjetividade engolfa a “não criação”, e se faz “reprodução” massificada, uma subjetividade indiferenciada em que todos em essência - embora com falas singulares própria à cada sujeito – são objetos da produção, mercadorias divinizadas na volúpia do consumo. O trabalho, antes como identidade da subjetividade, agora se faz subalternizado às formalidades da produção e ganha a forma simplificada de “força de trabalho”, mercadoria que também disponibiliza o “ser” como “ser” estranho a si mesmo, ou, vulgarizando, “ser alienado”. A subjetividade sucumbe aos prazeres do “ter”, uma subjetividade que não vai além das condições de classe.

Retornando a Marx, é importante recuperar seu pensamento expresso na “Introdução à Critica da Filosofia do Direito de Hegel”, quando com insuspeita maestria indica que o homem é o ser mais alto para o homem e, nesta objetiva antropolatria, afirma que o propósito do “ser trabalho “ ‘opus’ ” é subverter todas as relações nas quais o inumano rebaixa a existência, escraviza, abandona e torna desprezível a subjetividade decorrente da práxis radical.  Desta afirmação podemos com segurança deduzir que, no âmbito da subjetividade, Marx se preocupa com a subjetividade oprimida. E aí está a questão central oferecida pelo marxismo não dogmático: a subjetividade produzida pelo capitalismo é uma subjetividade em que a polifonia da transformação radical foi substituída pela docilidade do falar único, do falar sempre o mesmo falar. Vale, portanto, recordar  a observação de Walter Benjamin em suas “Teses sobre o conceito de História” de que  não há documento de cultura que não seja, no capitalismo, um documento de barbárie. A subjetividade no capitalismo é barbarizada pela imposição de uma subjetividade dependente da mercadoria, de uma subjetividade gloriosamente reificada. Embora detestada pelo marxismo dogmático, repito minha sempre afirmação: o marxismo através da subjetividade oprimida encontra finalmente sua escatologia: o messianismo. O desejo propulsor para o reencontro do “ser trabalho ‘opus’ ”. E aqui vale o uso da categoria “ainda-não-ser” produzida de forma brilhante por um marxista desprezado pelos doutos do marxismo: Ernst Bloch.

Mas antes de ir adiante, gostaria somente de recuperar a relação entre messianismo e melancolia no profícuo pensamento de Walter Benjamin. Resumindo tudo: o messianismo libertário, o messianismo declarado como um fazer em obrigatória prospecção, o messianismo que não se liberta da tensão dialética, é um messianismo que necessita ser forjado na dor pela perda de mim mesmo, na dor resultante de se perceber um sujeito com subjetividade subalternizada à produção de mercadorias. Esta dor vivenciada e dilacerante para a existência-ação se transforma em uma tristeza recuperadora, uma tristeza que nos direciona à prática revolucionária. Chamo atenção para isto porque usualmente os marxistas dogmáticos desprezam o messianismo reduzindo tudo à tomada de consciência de classe. Repito: sem a dor da tristeza pela aniquilação do “ser trabalho ‘opus’ ”,  não há intencionalidade subjetiva para  alimentar o fazer revolucionário. Desculpem-me a simplificação: assumir-se como um transformador radical não se faz sem algo que vem “de dentro” de cada sujeito da práxis.

E neste ponto retorno mais tranqüilo ao pensamento de Ernst Bloch. Esta subjetividade oprimida e forjada na dor da perda de minha condição original nos compele a um messianismo fundado numa necessidade de lutar pela restauração da fala oprimida, em resumo, na “esperança” de um “ser” plenamente “opus”; num ser-vir-a-ser sempre comunista; num ser-ainda-não-ser  que  nunca despreza o futuro como espaço da não alienação. Um ser-ainda-não-ser  que, tal como a tensão dialética, faz da subjetividade comunista um constante inconcluso. Um “algo”  que, mesmo nas condições comunistas, não acaba nunca. Isto tudo tem para Bloch um nome: o sonhar acordado. Uma utopia? Sim, mas uma utopia que reconhece o lugar de sua redenção. E a redenção – com toda a magia que pode carregar - está objetivamente no comunismo. Porém nunca num comunismo sempre o mesmo, mas num comunismo que exige permanecer na tensão dialética, num comunismo que não se satisfaz com o proletariado no poder, e, sim, num comunismo que carrega em si a guerra contra qualquer estado de  opressão. Repetimos então: uma utopia que não é a vulgarizada como sendo um lugar fruto do devaneio, mas uma utopia de integra inconclusivamente o ser-no-mundo.

Não tenho nenhuma intenção de mais me alongar, no entanto não posso dispensar uma última observação: a trilogia “Marx e a subjetividade humana” de Eduardo Vasconcelos se constitui assim num acervo documental importantíssimo para nossas reflexões sobre a subjetividade marxista. Não quero falar de como foi elaborada, mas do indispensável volume de informações que nos são ofertadas. Para mim, os três volumes são obrigatórios, porém tenho uma forte dependência intelectual do volume primeiro. Nele foi urdido com extremo zelo e férrea disciplina metodológica as idéias e os conceitos contidos nos textos teóricos de Marx. Um “trabalho-opus”, especialmente iniciado no Capítulo 2 e subseqüentes, que recupera a diacronia necessária aos estudos marxistas sobre a subjetividade. As questões relativas à categoria de “alienação” (Entfremdung) nos coloca no centro do pensar marxista, na essência da fala-ação oprimida. E Vasconcelos deixa bem claro que esta categoria se vincula a exitosa aparição do capitalismo e nos efeitos que esta categoria tem para dissolução das interdependências sociais. A busca pela des-alienação se transforma na força redentora da subjetividade humana e na esperança blochniana de um futuro de desejos e prazeres comunistas. Alias, para terminar, tudo o que expus anteriormente será melhor aproveitado na leitura do primeiro volume da trilogia “Karl Marx e a subjetividade humana”. Esta é uma das razões para que eu me mantenha sempre aluno – ainda que meio bagunçado – do Eduardo Vasconcelo

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