A caminho de uma ruptura global
A caminho de uma ruptura global
Chegada dos protestos ao Brasil e Turquia revela: há
mal-estar generalizado contra lógicas e ideologia do capitalismo.
Desafio é construir alternativas e nova democracia
1º/07/2013
Slavoj Žižek,
London Review of Books
Tradução Vila Vudu
Em
seus primeiros escritos, Marx descreve a situação na Alemanha como uma
daquelas na qual a única resposta a problemas particulares seria a
solução universal: a revolução global. É expressão condensada da
diferença entre período reformista e período revolucionário: em período
reformista, a revolução global permanece como sonho que, se serve para
alguma coisa, é apenas para dar peso
às tentativas para mudar alguma coisa localmente; em período
revolucionário, vê-se claramente que nada melhorará, sem mudança global
radical. Nesse sentido puramente formal, 1990 foi ano revolucionário: as
muitas reformas parciais nos estados comunistas jamais dariam conta do
serviço; e era necessária uma quebra total, para resolver todos os
problemas do dia a dia. Por exemplo, o problema de dar suficiente comida
às pessoas.
Em que ponto estamos hoje, quanto a
essa diferença? Os problemas e protestos dos últimos anos são sinais de
que se aproxima uma crise global, ou não passam de pequenos obstáculos
que pode enfrentar mediante intervenções locais? O mais notável nas
erupções é que estão acontecendo não apenas, nem basicamente, nos pontos
fracos do sistema, mas em pontos que, até aqui, eram percebidos como
histórias de sucesso. Sabemos por que as pessoas protestam na Grécia ou
na Espanha; mas por que há confusão em países prósperos e em rápido
desenvolvimento como Turquia, Suécia ou Brasil?
Com
algum distanciamento, pode-se ver que a revolução de Khomeini em 1979
foi o caso original de “dificuldades no paraíso”, dado que aconteceu em
país que caminhava a passos largos para uma modernização pró-ocidente, e
era o mais estável aliado do ocidente na região.
Antes
da atual onda de protestos, a Turquia era quente: modelo ideal de
estado estável, a combinar pujante economia liberal e islamismo
moderado. Pronta para a Europa, um bem-vindo contraste com a Grécia mais
“europeia”, colhida num labirinto ideológico e andando rumo à
autodestruição econômica. Sim, é verdade: aqui e ali sempre viam-se
alguns sinais péssimos (a Turquia, sempre a negar o holocausto dos
armênios; prisão de jornalistas; o status não resolvido dos curdos;
chamamentos a uma “grande Turquia” que ressuscitaria a tradição do
Império Otomano; imposição, vez ou outra, de leis religiosas). Mas eram
descartados como pequenas máculas que não comprometeriam o grande
quadro.
E então, explodiram os protestos na praça
Taksim. Não há quem não saiba que os planos para transformar um parque
em torno da praça Taksim no centro de Istambul em shopping center não
foram “o caso”, naqueles protestos; e que um mal-estar muito mais
profundo ganhava força. O mesmo se deve dizer dos protestos de meados de
junho no Brasil: foram desencadeados por um pequeno aumento na tarifa
do transporte público, e prosseguiram mesmo depois de o aumento ter sido
revogado. Também nesse caso, os protestos explodiram num país que –
pelo menos segundo a mídia – estava em pleno boom econômico e com todos
os motivos para sentir-se confiante quanto ao futuro. Nesse caso, os
protestos foram aparentemente apoiados pela presidente Dilma Rousseff,
que se declarou satisfeitíssima com eles.
O
que une protestos em todo o mundo — por mais diversos que sejam, na
aparência — é que todos reagem contra diferentes facetas da globalização
capitalista
É crucialmente importante
não vermos os protestos turcos meramente como sociedade civil secular
que se levanta contra regime islamista autoritário, apoiado por uma
maioria islamista silenciosa. O que complica o quadro é o ímpeto
anticapitalista dos protestos. Os que protestam sentem intuitivamente
que o fundamentalismo de mercado e o fundamentalismo islâmico não se
excluem mutuamente.
A privatização do espaço
público por ação de um governo islamista mostra que as duas modalidades
de fundamentalismo podem trabalhar de mãos dadas. É sinal claro de que o
casamento “por toda a eternidade” de democracia e capitalismo já
caminha para o divórcio.
Também é importante
reconhecer que os que protestam não visam a nenhum objetivo “real”
identificável. Os protestos não são, “realmente”, contra o capitalismo
global, nem “realmente” contra o fundamentalismo religioso, nem
“realmente” a favor de liberdades civis e democracia, nem visam
“realmente” qualquer outra coisa específica. O que a maioria dos que
participaram dos protestos “sabem” é de um mal-estar, de um
descontentamento fluido, que sustenta e une várias demandas específicas.
A
luta para entender os protestos não é luta só epistemológica, com
jornalistas e teóricos tentando explicar seu “real” conteúdo: é também
luta ontológica pela própria coisa, o que esteja acontecendo dentro dos
próprios protestos. É apenas luta contra governo corrupto? É luta contra
governo islâmico autoritário? É luta contra a privatização do espaço
público? A pergunta continua aberta. E de como seja respondida dependerá
o resultado de um processo político em andamento.
Em
2011, quando irrompiam protestos por toda a Europa e todo o Oriente
Médio, muitos insistiram que não fossem tratados como instâncias de um
único movimento global. Em vez disso, argumentavam, haveria uma resposta
específica para cada situação específica. No Egito, os que protestavam
queriam o que em outros países era alvo das críticas do movimento
Occupy: “liberdade” e “democracia”. Mesmo entre países muçulmanos,
haveria diferenças cruciais: a Primavera Árabe no Egito seria contra um
regime autoritário e corrupto aliado do ocidente; a Revolução Verde no
Irã, que começou em 2009, seria contra o islamismo autoritário. É fácil
ver o quanto essa particularização dos protestos serve bem aos
defensores do status quo: não há nenhuma ameaça direta à ordem global
como tal. Só uma série de problemas locais separados…
O
capitalismo global é processo complexo que afeta diferentes países de
diferentes modos. O que une todos os protestos, por mais multifacetados
que sejam, é que todos reagem contra diferentes facetas da globalização
capitalista. A tendência geral do capitalismo global é hoje expandir o
mercado, invadir e cercar o espaço público, reduzir os serviços públicos
(saúde, educação, cultura) e impor cada vez mais firmemente um poder
político autoritário. Nesse contexto, os gregos protestam contra o
governo do capital financeiro internacional e contra seu próprio estado
ineficiente e corrupto, cada dia menos capaz de prover os serviços
sociais básicos. Nesse contexto, os turcos protestam contra a
comercialização do espaço público e contra o autoritarismo religioso. E
os egípcios protestam contra um governo apoiado pelas potências
ocidentais. E os iranianos protestam contra a corrupção e o
fundamentalismo religioso. E assim por diante.
Nenhum
desses protestos pode ser reduzido a uma única questão. Todos lidam com
uma específica combinação de pelo menos dois problemas, um econômico
(da corrupção à ineficiência do próprio capitalismo); o outro,
político-ideológico (da demanda por democracia à demanda pelo fim da
democracia convencional multipartidária). O mesmo se aplica ao movimento
Occupy. Na profusão de declarações (muitas vezes confusas), o movimento
manteve dois traços básicos: primeiro, o descontentamento com o
capitalismo como sistema, não apenas contra um ou outro corrupto ou
corrupções locais; segundo, a consciência de que a forma
institucionalizada de democracia multipartidária não tem meios para
combater os excessos capitalistas. Em outras palavras, é preciso
reinventar a democracia.
A causa subjacente dos
protestos ser o capitalismo global não significa que a única solução
seja “derrubar” o capitalismo. Nem é viável seguir a alternativa
pragmática, que implica lidar com problemas individuais enquanto se
espera por transformação radical. Essa ideia ignora o fato de que o
capitalismo global é necessariamente contraditório e inconsistente: a
liberdade de mercado anda de mãos dadas com os EUA protegerem seus
próprios agronegócios e agronegociantes; pregar a democracia anda de
mãos dadas com apoiar o governo da Arábia Saudita.
Essa
inconsistência abre um espaço para a intervenção política: onde o
capitalista global é forçado a violar suas próprias regras, ali há uma
oportunidade para insistir em que ele obedeça àquelas regras. Exigir
coerência e consistência em pontos estrategicamente selecionados nos
quais o sistema não pode pagar para ser coerente e consistente é
pressionar todo o sistema. A arte da política está em impor demandas
específicas as quais, ao mesmo tempo em que são perfeitamente realistas,
ferem o coração da ideologia hegemônica e implicam mudança muito mais
radical. Essas demandas, por mais que sejam viáveis e legítimas, são, de
fato, impossíveis. Caso exemplar é a proposta de Obama para prover
assistência pública universal à saúde. Por isso as reações foram tão
violentas.
Um movimento político começa com uma
ideia, algo por que lutar, mas, no tempo, a ideia passa por
transformação profunda – não apenas alguma acomodação tática, mas uma
redefinição essencial –, porque a própria ideia passa a ser parte do
processo: torna-se sobredeterminada.* Digamos que uma revolta comece
com uma demanda por justiça, talvez sob a forma de demanda pela rejeição
de uma determinada lei. Depois de o povo estar profundamente engajado
na revolta, ele percebe que será preciso muito mais do que a demanda
inicial, para que haja verdadeira justiça. O problema então é definir,
precisamente, em que consiste esse “muito mais”.
A
perspectiva liberal-pragmática entende que os problemas podem ser
resolvidos gradualmente, um a um: “Há gente morrendo agora em Rwanda,
então esqueçam a luta anti-imperialista e vamos impedir o massacre”. Ou:
“Temos de combater a pobreza e o racismo já, aqui e agora, não esperar
pelo colapso da ordem capitalista global”. John Caputo argumenta
exatamente assim em After the Death of God (2007):
Eu
ficaria perfeitamente feliz se os políticos da extrema-esquerda nos EUA
fossem capazes de reformar o sistema oferecendo assistência universal à
saúde, redistribuindo efetivamente a riqueza mais equitativamente com
um sistema tributário [orig. Internal Revenue Code (IRC)] redefinido,
restringindo o financiamento privado de campanhas eleitorais,
autorizando o voto universal, para todos, tratando com humanidade os
trabalhadores migrantes, e levando a efeito uma política externa
multilateralista que integrasse o poder dos EUA dentro da comunidade
internacional etc. Ou seja, intervindo sobre o capitalismo mediante
reformas profundas, de longo alcance… Se depois de fazer tudo isso,
Badiou e Žižek ainda reclamarem de um monstro chamado Capitalismo a nos
assombrar, eu estaria inclinado a receber o tal monstro com um bocejo.
Não
se trata de “derrubar” o capitalismo. Mas de construir lógicas de uma
sociedade que vá além dele. Isso inclui novas formas de democracia
O
problema aqui não é a conclusão de Caputo: se se pode alcançar tudo
isso dentro do capitalismo, por que não ficar aí mesmo? O problema é a
premissa subjacente de que seja possível obter tudo isso dentro do
capitalismo global em sua forma atual. Mas e se os emperramentos e mau
funcionamento do capitalismo, que Caputo listou, não forem meras
perturbações contingentes, mas necessários por estrutura? E se o sonho
de Caputo é um sonho de ordem capitalista universal, sem sintomas, sem
os pontos críticos nos quais sua “verdade reprimida” mostra a própria
cara?
Os protestos e revoltas de hoje são
sustentados pela combinação de demandas sobrepostas, e é aí que está a
sua força: lutam por democracia (“normal”, parlamentar) contra regimes
autoritários; contra o racismo e o sexismo, especialmente quando
dirigidos contra imigrantes e refugiados; contra a corrupção na política
e nos negócios (poluição industrial do meio ambiente etc.); pelo estado
de bem-estar contra o neoliberalismo; e por novas formas de democracia
que avancem além dos rituais multipartidários. Questionam também o
sistema capitalista global como tal, e tentam manter viva a ideia de uma
sociedade que avance além do capitalismo.
Duas
armadilhas há aí, a serem evitadas: o falso radicalismo (“o que
realmente interessa é abolir o capitalismo liberal-parlamentar; todas as
demais lutas são secundárias”), mas, também, o falso gradualismo (“no
momentos temos de lutar contra a ditadura militar e por democracia
básica, todos os sonhos de socialismo devem ser, agora, postos de
lado”).
Aqui, ninguém se deve envergonhar de
acionar a distinção maoista entre antagonismo principal e antagonismos
secundários, entre os que mais interessam no fim e os que dominam hoje.
Há situações nas quais insistir no antagonismo principal significa
perder a oportunidade de acertar golpe significativo, no curso da luta.
Só
uma política que tome plenamente em consideração a complexidade da
sobredeterminação merece o nome de estratégia. Quando se embarca numa
luta específica, a pergunta chave é: como nosso engajamento ou
desengajamento nessa luta afeta outras lutas?
A
regra geral é que quando uma revolta contra regime semidemocrático
começa – como no Oriente Médio em 2011 – é fácil mobilizar grandes
multidões com slogans (por democracia, contra a corrupção etc.). Mas
muito rapidamente temos de enfrentar escolhas muito mais difíceis.
Quando a revolta é bem-sucedida e alcança o objetivo inicial, nos damos
conta de que o que realmente nos perturbava (a falta de liberdade, a
humilhação diária, a corrupção, o futuro pouco ou nenhum) persiste sob
novo disfarce. Nesse momento somos forçados a ver que havia furos no
próprio objetivo inicial. Pode implicar que se chegue a ver que a
democracia pode ser uma forma de des-liberdade, ou que se pode exigir
muito mais do que apenas a mera democracia política: que a vida social e
econômica tem de ser também democratizada.
Em
resumo, o que à primeira vista tomamos como fracasso que só atingia um
nobre princípio (a liberdade democrática) é afinal percebido como
fracasso inerente ao próprio princípio. Essa descoberta – de que o
princípio pelo qual lutamos pode ser inerentemente viciado – é um grande
passo em qualquer educação política.
Representantes
da ideologia reinante mobilizam todo o seu arsenal para impedir que
cheguemos a essa conclusão radical. Dizem-nos que a liberdade
democrática implica suas próprias responsabilidades, que tem um preço,
que é sinal de imaturidade esperar demais da democracia. Numa sociedade
livre, dizem eles, devemos agir como capitalistas e investir em nossa
própria vida: se fracassarmos, se não conseguirmos fazer os necessários
sacrifícios, ou se de algum modo não correspondermos, a culpa é nossa.
Em
sentido político mais direto, os EUA perseguem coerentemente uma
estratégia de controle de danos em sua política externa, recanalizando
os levantes populares para formas capitalistas-parlamentares aceitáveis:
na África do Sul, depois do apartheid; nas Filipinas, depois da queda
de Marcos; na Indonésia, depois de Suharto etc. É nesse ponto que a
política propriamente dita começa: a questão é como empurrar ainda mais
adiante, depois que passa a primeira, excitante, onda de mudança; como
dar o passo seguinte, sem sucumbir à tentação “totalitária”; como
avançar além de Mandela, sem virar Mugabe.
O que
significaria isso, num caso concreto? Comparemos dois países vizinhos,
Grécia e Turquia. À primeira vista, talvez pareçam completamente
diferentes: Grécia, presa na armadilha da ruinosa política de
austeridade; Turquia em pleno boom econômico e emergindo como nova
superpotência regional. Mas e se cada Turquia contiver sua própria
Grécia, suas próprias ilhas de miséria? Como Brecht diz em sua Elegias
Hollywoodenses (orig. Hollywood Elegies’ [1942]),
A vila de Hollywood foi planejada segundo a ideia
De que o povo aqui seria proprietário de partes do paraíso. Ali,
Chegaram à conclusão de que Deus
Embora precisando de céu e inferno, não precisava
Planejar dois estabelecimentos, mas
Só um: o paraíso. Que esse,
para os pobres e infortunados, funciona
como inferno.[1]
Esses
versos descrevem bastante bem a “aldeia global” de hoje: aplicam-se ao
Qatar ou Dubai, playgrounds para os ricos, que dependem de manter os
trabalhadores imigrantes em estado de semiescravidão, ou escravidão.
Exame mais detido revela semelhanças entre Turquia e Grécia:
privatizações, o fechamento do espaço público, o desmonte dos serviços
sociais, a ascensão de políticos autoritários. Num plano elementar, os
que protestam na Grécia e os que protestam na Turquia estão engajados na
mesma luta. O melhor caminho talvez seja coordenar as duas lutas,
rejeitar as tentações “patrióticas”, deixar para trás a inimizade
histórica entre os dois países e buscar espaços de solidariedade. O
futuro dos protestos talvez dependa disso.
Slavoj
Žižek é um filósofo e teórico crítico esloveno. É professor da European
Graduate School e pesquisador sênior no Instituto de Sociologia da
Universidade de Liubliana.
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Notas da tradução:
* Em seu prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política,
Marx escreveu (no seu pior modo evolucional) que a humanidade só se
propõe problemas que seja capaz de resolver. E se invertermos a ganga
dessa frase e declararmos que, regra geral, a humanidade propõe-se
problemas que não pode resolver, e assim dispara um processo cujo
desdobramento é imprevisível, no curso do qual, a própria tarefa é
redefinida?
[1] Não encontramos tradução para o português. Aqui, tradução de trabalho, sem ambição literária, só para ajudar a ler [NTs].