Simples diários complexos - Entrevista - Edgar Morin
Entrevista - Edgar Morin
Simples diários complexos
Em mais uma visita ao Brasil, Edgar Morin lança três novos livros. Seus diários, importante forma de escrita durante sua vida, aprofundam aspectos essenciais por meio de elementos comuns
Por: Sérgio Mélega
É uma luta contra o tempo." Assim Edgard Morin define o diário.
Ele fala da importância desse tipo de relato em sua vida - e por que
voltou a fazer suas reflexões por meio desses escritos depois de alguns
anos - em um encontro que aconteceu no Sesc Pompeia, em São Paulo, no
final de outubro de 2012. "Para que os dias que passam não se dissolvam
inteiramente (...) é querer correr atrás da vida que está passando e
recolher migalhas dela."
Diário da Califórnia, Um ano sísifo e Chorar, amar, rir, compreender - que foram reeditados pelas Edições Sesc-SP e lançados no Brasil nesta mesma ocasião - relatam momentos de sua vida comum, em episódios que mesclam o sumiço momentâneo de um animal de estimação, o prazer de ver uma partida da seleção brasileira na Copa do Mundo pela TV e a indignação com a paralisia da Europa em relação aos conflitos catastróficos passados na África no ano de 1994, com milhares de mortos. Se as contribuições de suas teorias são enormes, seu humanismo, algo anacrônico nos dias de hoje, é igualmente importante.
Opor questões científicas com humanistas, para Morin, é perder dos dois lados. Vivemos em um mundo onde nunca se disseminou tanto conhecimento e, por isso, articular as diferentes áreas nunca foi tão necessário, segundo o filósofo. Justamente pelo fato de o mundo ter ficado mais complexo, Morin busca novas estruturas mentais de compreensão desse novo universo, formas alternativas de integração. Seu trabalho, há mais de meio século, tem sido o de mostrar conexões entre os saberes e, tanto para questões perenes, como a vida e a morte, quanto para os novos desafios que as tecnologias e as novas descobertas científicas impõem ao ser humano, Edgar Morin demonstra ávido interesse. Nessa entrevista, concedida à Filosofia no hotel em que ficou hospedado em São Paulo, na Alameda Santos, ele fala sobre a crise econômica na Europa, aspectos filosóficos da Ciência e da Educação, o seu não lugar como intelectual e as fronteiras limitadoras dos saberes em reflexões muito atuais e desafiadoras.
FILOSOFIA ● Eu inicio
com uma pergunta sobre a Europa. Há uma crise europeia e que começa a se
tornar uma crise da própria União Europeia. Os países começam a buscar
soluções individualistas, como, por exemplo, a Grécia. Como é possível
manter a complexidade e sua união institucional?
Edgar Morin ● Para entender esse aspecto é necessário voltarmos à história, é necessário pensar que a ideia de União Europeia vem do desastre da Segunda Guerra Mundial, que foi um suicídio para a Europa que foi salva pelos americanos e soviéticos. Então, a ideia de fazer uma Europa política e cultural, por assim dizer, é uma ideia evidente para que os Estados estejam reunidos, confederados. Porém, desde o início vemos uma resistência nacionalista que não quer perder a soberania, sobretudo na França; Charles de Gaulle recusou uma união militar. Em 1953, ao mesmo tempo em que houve uma crise na Europa, quero dizer, um fiasco da Europa política, um grande desenvolvimento econômico começava a atravessar a região, e sob esse desenvolvimento começou-se a fabricar uma Europa econômica. Porém, a Europa econômica permanece política e, por isso, nos vimos entre muitas crises. A primeira crise, não podemos esquecer, foi a guerra da Iugoslávia, ela mesma um microcosmo da Europa, com os gregos, os sérvios de religião ortodoxa, os croatas católicos, os muçulmanos, todos juntos. Os países europeus foram incapazes de impedir essa guerra. Temos também a questão da guerra de Kosovo, com a intervenção americana. Logo, a incapacidade política da Europa é um fato fundamental. Esses países que se formaram após a queda do império soviético foram aceitos nesse meio tempo pela Europa para buscar uma harmonia e manter uma condição econômica, mas não houve nenhuma unidade política. Logo, há uma heterogeneidade enorme. Tome, por exemplo, a segunda guerra do Iraque. Se olharmos para a intervenção americana contra Saddan Hussein, a França e a Alemanha foram contra essa guerra, entendendo que era arriscado desintegrar o Iraque sob um pretexto duvidoso, que eram as armas químicas. Então havia divergência entre os pontos de vista. Essas divergências permanecem e são múltiplas. Não há nenhuma unidade sobre a questão do Oriente Médio, sobre a questão da Palestina e de Israel, por isso a debilidade política da Europa é total. Então, chegamos à crise de 2008, que trouxe consigo a angústia, a perda do futuro. Não há nenhuma esperança no futuro, nenhum progresso nos meios mecânicos, nada que indique a retomada da identidade e do passado, e temos o desenvolvimento de países europeus de tendência nacionalista, por vezes xenófoba. Vemos que os interesses comuns da Europa já estão ameaçados, e podemos falar de mais dois eventos, com a Grécia e a Hungria. A Grécia tem imposto uma política, a meu ver, completamente absurda sobre o povo grego. As políticas de austeridade têm sido catastróficas. Começamos a compreender que lutar contra a crise é passar por uma retomada econômica, mas como isso é possível se as pessoas não têm dinheiro, não têm trabalho, não têm esperança? A Grécia está um caos terrível. De outro lado, a Hungria começou a se fechar como um sistema autoritário e antidemocrático. Portanto, a Europa está ameaçada e você bem notou que o euro também, que, apesar de ser uma moeda muito sólida, está ameaçada, pois não há uma autoridade, um banco central dotado de poder político. Então, estamos numa crise política muito ameaçadora. A Europa com a sua diversidade não foi capaz de conduzir sua unidade. A crise cria a ocasião para aqueles que querem dar um passo à frente, mas também permite que se dê um passo para trás. A crise é ambivalente, temos a progressão e a regressão. Não sabemos se continuará. As soluções encontradas até aqui não nos fazem crer que vai acabar. A Alemanha, por exemplo, se recusa quando se fala da revisão das dívidas, de solidariedade econômica...
Então, a Europa está duplamente ameaçada, ela pode sair da crise, mas o seu problema continua. Ela não pode consolidar sem se criar uma unidade econômica, e essa unidade econômica supõe a perda de parte da soberania em proveito da comunidade. Temos, portanto, incerteza e inquietude. Eu acrescentaria que a opinião pública não tem vez na Europa. Simplesmente o que se admite é o passado europeu, são seus símbolos. Mas eles são insuficientes. Não há um pensamento político na Europa, não há um renascimento como o do século XV. A meu ver, as probabilidades são ruins, mas sempre acreditei que o improvável é possível. Eu sempre estou pelo improvável. Então, eu espero pelo improvável.
FILOSOFIA ● Você disse no seu livro Um ano Sísifo que o seu amigo Milan Kundera se recusa a dar entrevistas, pois é frequentemente mal interpretado. Você acredita que existam ideias suas mal compreendidas ainda hoje?
Morin ● Sabe, Milan Kundera tem razão nisso, e ele conseguiu delimitar essas entrevistas; eu não pude fazê-lo e eu vou te explicar o porquê. Quando se escreve, o livro vira uma testemunha. O autor não é o livro, mas sempre temos muitos jornalistas, escritores que tentam compreender o pensamento do autor para decifrar o livro. Eu entendo que isso é uma dispersão e uma superficialização. Nós estamos numa época de jornalistas preguiçosos, que antes de fazer as críticas dos livros preferem entrevistar o autor. Eu mesmo sou um autor sempre convidado a falar dos meus livros. Mas, por outro lado, há bons e maus entrevistadores. Quais são os bons entrevistadores? Eu encontrei bons jornalistas na Folha e no Globo aqui no Brasil e no Clarín da Argentina. Os bons entrevistadores são os jornalistas cultos, que conhecem a minha obra e que não vão trair as minhas ideias. Mas há menos de um mês eu tive em Paris uma entrevista criminosa. Falei com uma jornalista e, quando ela me mostrou, havia cortado e preenchido passagens intermediárias com sua linguagem, e acabei perdendo 4 horas para corrigir a entrevista. Então há algumas entrevistas assim. Agora, por que eu continuo dando entrevistas? Porque a crítica de livros franceses não se interessa muito por mim. Há muitas razões: para os críticos, os escritores, os filósofos, os sociólogos, eu sou uma espécie de camaleão, não sou um escritor, não sou um filósofo, um sociólogo, não tenho forma, não tenho etiqueta, logo não inspiro interesse. Então, uma maneira de fazer as minhas ideias serem conhecidas é fazê-las passar também pelas entrevistas. Me sinto um pouco obrigado a dar entrevistas. Kundera disse muito sabiamente certa vez: "Um dia eu espero vir dogmático, mas isso eu ainda não sou".
FILOSOFIA ● Hoje em dia
muitos pensamentos filosóficos são vistos sob a luz das novas
descobertas cientificas. Como você avalia essa revisão dos pensamentos
filosóficos na óptica das ciências naturais?
Morin ● Bom, no que me diz respeito, falando da França e de alguns outros países europeus, em geral os filósofos continuam a dizer que a Filosofia trata do pensamento, dos autores do passado, sobre alguns autores do presente, sobre alguns escritores. Eles estão fechados à Ciência. Da mesma forma, os cientistas desprezam a Filosofia por entendê- la como pura conversa vazia. Mas os filósofos dirão que os cientistas são superficiais. Então, nós temos uma fronteira. No meu caso, desde a minha juventude, tudo me interessa e isso inclui as enormes contribuições da Ciência ao conhecimento, pois a Ciência reformula nossa concepção do mundo. O cosmos não é mais o de Copérnico. A Ciência subverteu nosso senso de realidade material. Hoje nós sabemos muita coisa sobre o universo. Temos a Microfísica que recria o sentido de realidade. Essas são, de fato, questões filosóficas. Os avanços da Ciência chegam aos problemas filosóficos, mas os filósofos não se interessam por esse conhecimento. Alguns cientistas se interessam, sim, pela Filosofia, como Michel Cassé e alguns outros na França. Na Biologia, igualmente; hoje em dia nós sabemos que a vida é feita de moléculas, que são organizações complexas. Eu refleti muito sobre isso, inclusive trabalhei nesse assunto. Eu acho que a necessária comunicação entre pensamento e Ciência não existe. Isto é, a Filosofia é como um moinho para os grãos; a Ciência produz os grãos, mas não é capaz de moê-los. A Ciência não pensa a si mesma. Por isso eu me considero uma exceção, eu não sou como os outros filósofos. Mas, na realidade, e infelizmente, permanece a ideia de compartimentos e separação dos saberes. Como você sabe, o meu ponto de vista é pela complexidade. A complexidade religa os saberes separados para se compreender a realidade do mundo.
FILOSOFIA ● Você
é formado em História, Filosofia e Direito. O mundo atual valoriza o
conhecimento hoje como um produto. Como é possível fazer as pessoas se
interessarem pelo conhecimento puro, sem um fim comercial?
Morin ● Bom, para começar a curiosidade é própria das crianças, mas se os professores não têm paixão, se estão entediados, acabam arrefecendo a curiosidade delas. Creio que há dois problemas: uma coisa que diria Platão é que para ensinar é necessário amor, paixão. Essas condições não estão num manual, porém são fundamentais; o segundo problema é que precisamos relacionar as disciplinas múltiplas. Se você fizer a seguinte pergunta: "o que é o ser humano?" Essa é uma pergunta sobre os diversos saberes que temos em relação ao ser humano. Eu vejo que as ciências humanas estão dispersas, a Psicologia, a Sociologia. Também temos os conhecimentos que nos dá a Literatura, porque ela nos ensina sobre o ser humano. Podemos pensar também na Biologia, afinal de contas somos mamíferos, vertebrados, animais, nós somos fabricados biologicamente. E a Biologia é ligada à Física também, ao cosmos, porque nós somos feitos de moléculas, de átomos, de partículas, enfim, nós somos produtos de todos os conhecimentos. Se você ensina o que é o ser humano aos seus alunos, você os cativa. Eu acho que uma ciência muito interessante é a História. Um bom professor de História faz seus alunos se apaixonarem pela disciplina, pois é um saber muito interessante. Mas compartimentar os saberes em disciplinas torna o conhecimento menos interessante do que ele poderia ser.
FILOSOFIA ● Qual é o espaço do pensamento complexo em um mundo cada vez mais tecnológico?
Morin ● Bom, a complexidade foi formulada pela primeira vez entre matemáticos, engenheiros e cibernéticos. Foi o judeu alemão Norbert Wiener, o homem que descobriu o feedback positivo e negativo, a retroação negativa e utilizou a roda da complexidade para definir a grande variedade do sistema. Isso ficou isolado das ciências humanas e das ciências naturais. O mundo da tecnologia é predominantemente determinista porque a Cibernética se desenvolve do determinismo. Eu creio que nós estamos numa época em que a complexidade se impõe sobre a compartimentação. É um novo caminho para o mundo, para o ensino. Isso já acontece em alguns países da América Latina, o Brasil, por exemplo. Sobretudo é necessária uma mudança de estrutura mental. Em minha opinião, a mudança de estrutura mental é muito importante. De qualquer forma, felizmente há uma diversidade de pessoas em todas as sociedades. Hoje em dia, há muita gente que não está convencida com as ideias dominantes, há muita gente que não está satisfeita com o modo de conhecimento fragmentário e aspiram à complexidade. Eu vejo muita gente que foi tocada pela mensagem da complexidade, às quais pude convencer sobre essas ideias. Elas desejam isso, não estão satisfeitas, buscam a posse da verdade. Mas a reforma da estrutura de ensino é algo muito difícil de se realizar.
FILOSOFIA ● Qual é a sua opinião sobre a teoria do desenvolvimento, o processo de conhecimento como a teoria da inteligência múltipla?
Morin ● É muito difícil definir a inteligência porque não é um quociente individual. A inteligência é um conjunto de qualidades muito diferentes porque necessita de capacidade de síntese, de análise e, no mínimo, de capacidade reflexiva e autocrítica. A inteligência necessita também de sensibilidade, porque a razão fria é muito limitada, mas uma paixão sem razão é muito limitada também. É necessária a mistura de razão e paixão. Então penso que a inteligência não tem uma definição simples. Há uma complexidade de elementos que permitem a inteligência. Há outra coisa que ultrapassa a inteligência, que é a capacidade de criar. A criatividade é algo em que é preciso capacidade intelectual, mental, cerebral. A possibilidade de fazer uma combinação nova, de fazer descobertas novas também exige inteligência. Por exemplo, Newton quando vê uma maçã cair, que é um acontecimento extremamente banal, é preciso estar livre da universidade e se permitir refletir. Perguntar por que a maçã cai é um ato de inteligência porque a inteligência é a capacidade de interrogar. Desse evento ele criou a teoria da gravidade. Então, a inteligência permitiu que essa admiração fosse uma corrente que o levasse à questão: por que existe o tempo, como ele acontece? Essa é uma pergunta banal, mas uma fez que ele a fez, ela o levou a uma teoria que pudesse fazê-la ser respondida. Então, a inteligência é a capacidade de admiração, de se inquietar, a curiosidade... muitas coisas se somam à inteligência, é um coquetel, e quando benfeito é como uma boa caipirinha.
FILOSOFIA ● Creio que
muitas teorias o influenciaram e o guiaram no começo da vida acadêmica.
Quais são as teorias que você abandonou nesse percurso, que já não te
influenciam mais?
Morin ● Eu praticamente não abandonei nada, eu muito mais integrei, sob a concepção que eu entendo mais rica, a complexidade. Desde o início do meu primeiro trabalho importante, que se chama O homem e a morte - e que agora faz 63 anos de lançamento -, eu parti justamente da pergunta sobre o significado da morte. Eu pensava muito sobre isso quando eu frequentava a biblioteca nacional francesa à época. Eu pensei: devo começar pela pré-história porque temos as tumbas com os mortos, suas posições, suas armas para buscar alimentos. Temos a pré-história e as populações arcaicas. Sobre elas trabalharam etnógrafos para ver as crenças relacionadas à morte. Era necessário que eu estudasse as religiões, a História, a Psicologia - principalmente a Psicologia infantil no estudo da descoberta da criança em relação à realidade da morte -, a Psicanálise, com Freud, Jung. Era preciso que se fizesse uma viagem em todas as ciências humanas. A Literatura e a Poesia expressam coisas muito importantes sobre a morte e também temos informações na Biologia. Então, se há um tema importante, se há um tema fundamental e universal, somos obrigados a procurar e tentar encontrar uma resposta. Por exemplo, algo que pude perceber foi encontrar o heroísmo diante da morte. O que eu encontrava por todas as partes nessas civilizações era a capacidade desses indivíduos de dar a própria vida, de arriscar a vida pela família, pela pátria, pela religião, e isso é uma contradição. A maneira como eu tentei tratar essa contradição foi por uma concepção complexa do tema humano. Eu digo que o ser humano tem duas lógicas equivalentes de formação: uma é a lógica egocêntrica, eu sou o centro do meu mundo, eu estou no centro do mundo e esse pensamento é vital porque precisamos nos alimentar, nos defender etc. Quando estamos totalmente sós não só temos a atitude egoísta, temos também uma outra lógica, a do nós, da comunidade, do altruísmo - e isso a criança desde que nasce tem a necessidade do olhar, do carinho da mãe, dos pais, da comunidade. Então, assim como opera em nós a lógica do eu, eu, eu, temos a do nós. Eu sou; eu existo, mas eu posso partir para algo maior, mais grandioso, mais belo e posso me sacrificar por isso. Gosto muito de tratar dessas contradições. A partir desse livro, eu trato do tema complexo que é necessário buscar por todos os lados e uni-los, entender como as contradições podem ser religadas. Essa foi a minha maneira de ser. Eu não estava em nenhuma universidade quando fiz esse livro, eu estava desempregado. Tudo o que eu fiz desde então tem um viés sociológico, mas não somente sociológico, histórico, antropológico. Bom, mas o que eu abandonei na minha carreira? Quando eu era um adolescente, antes da Segunda Guerra, sabia sem saber da visão complexa sobre a Política, o homem político que eu admirava e dizia para todo mundo que era necessário lutar em duas frentes. À época, se dizia que era preciso lutar contra o fascismo e o stalinismo. Era uma época que havia uma crise da democracia, uma crise do capitalismo e onde o fascismo e o stalinismo eram pseudo-respostas. Havia pensadores que buscavam uma terceira via; nem o fascismo, nem o comunismo, nem a democracia corrompida que existia, nem o reino do dinheiro do capitalismo, era preciso uma terceira via. Bom, quando a guerra chegou e a França foi esmagada, não foi mais possível uma terceira via. Eu abandonei essa ideia e me converti a justificar o comunismo de Stálin. Eu encontrei dois argumentos que ainda hoje não os recuso e não os abandonei totalmente. Eu dizia pra mim mesmo que havia duas razões para isso: a primeira é uma incerteza capitalista que impedia a União Soviética de desenvolver as suas chamadas civilizações socialistas, e, segunda, o estágio da Rússia czarista e burocrata formado após a vitória. Um terceiro argumento viria da filosofia de Hegel, que é o conceito de astúcia da razão. Por exemplo, Napoleão era um ditador e ao mesmo tempo difundiu os ideais da Revolução Francesa na Europa. Eu pensei que Stálin era um ditador que difundiria os ideais comunistas. Essas ideias eu as abandonei e fiz críticas muito severas. Eu ainda penso que o argumento da incerteza capitalista traz parte da verdade, mas não é a própria verdade. O argumento sobre a herança czarista também é parte da verdade, mas não é toda a verdade, e a astúcia da razão também não é toda verdade. Então, eu cheguei e retornei à ideia de que se luta em duas frentes. Quais são as duas frentes hoje? São os dois tipos de barbáries, a barbárie atual da dominação do cálculo, do lucro, das finanças de todas as coisas, e a outra é a velha barbárie do ódio, do desprezo, do racismo, do massacre e da tortura. Essas duas barbáries estão ligadas uma à outra nos dias de hoje. Dessa forma, eu retomo a luta pela reforma, eu retorno às ideias da minha juventude. Não abandonei muita coisa, antes eu as integrei e as relativizei.
Sérgio Rodrigo Mélega é bacharel em Letras - Alemão/Português - pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Licenciado em Português na Faculdade de Educação da mesma universidade. Publicou artigo acadêmico na revista MELP
Fonte: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/78/artigo277295-1.asp#.UfHEO87HCPw.facebook
Simples diários complexos
Em mais uma visita ao Brasil, Edgar Morin lança três novos livros. Seus diários, importante forma de escrita durante sua vida, aprofundam aspectos essenciais por meio de elementos comuns
Por: Sérgio Mélega
Diário da Califórnia, Um ano sísifo e Chorar, amar, rir, compreender - que foram reeditados pelas Edições Sesc-SP e lançados no Brasil nesta mesma ocasião - relatam momentos de sua vida comum, em episódios que mesclam o sumiço momentâneo de um animal de estimação, o prazer de ver uma partida da seleção brasileira na Copa do Mundo pela TV e a indignação com a paralisia da Europa em relação aos conflitos catastróficos passados na África no ano de 1994, com milhares de mortos. Se as contribuições de suas teorias são enormes, seu humanismo, algo anacrônico nos dias de hoje, é igualmente importante.
Opor questões científicas com humanistas, para Morin, é perder dos dois lados. Vivemos em um mundo onde nunca se disseminou tanto conhecimento e, por isso, articular as diferentes áreas nunca foi tão necessário, segundo o filósofo. Justamente pelo fato de o mundo ter ficado mais complexo, Morin busca novas estruturas mentais de compreensão desse novo universo, formas alternativas de integração. Seu trabalho, há mais de meio século, tem sido o de mostrar conexões entre os saberes e, tanto para questões perenes, como a vida e a morte, quanto para os novos desafios que as tecnologias e as novas descobertas científicas impõem ao ser humano, Edgar Morin demonstra ávido interesse. Nessa entrevista, concedida à Filosofia no hotel em que ficou hospedado em São Paulo, na Alameda Santos, ele fala sobre a crise econômica na Europa, aspectos filosóficos da Ciência e da Educação, o seu não lugar como intelectual e as fronteiras limitadoras dos saberes em reflexões muito atuais e desafiadoras.
Lutar contra a crise é
passar por uma retomada econômica, mas como isso é possível se as
pessoas não têm dinheiro, não têm trabalho, não têm esperança?
(Veja palestra de Morin sobre o lançamento de seus livros no Brasil em nossa página no Facebook: www.facebook.com/RevistaFilosofiaCienciaEVida)Edgar Morin ● Para entender esse aspecto é necessário voltarmos à história, é necessário pensar que a ideia de União Europeia vem do desastre da Segunda Guerra Mundial, que foi um suicídio para a Europa que foi salva pelos americanos e soviéticos. Então, a ideia de fazer uma Europa política e cultural, por assim dizer, é uma ideia evidente para que os Estados estejam reunidos, confederados. Porém, desde o início vemos uma resistência nacionalista que não quer perder a soberania, sobretudo na França; Charles de Gaulle recusou uma união militar. Em 1953, ao mesmo tempo em que houve uma crise na Europa, quero dizer, um fiasco da Europa política, um grande desenvolvimento econômico começava a atravessar a região, e sob esse desenvolvimento começou-se a fabricar uma Europa econômica. Porém, a Europa econômica permanece política e, por isso, nos vimos entre muitas crises. A primeira crise, não podemos esquecer, foi a guerra da Iugoslávia, ela mesma um microcosmo da Europa, com os gregos, os sérvios de religião ortodoxa, os croatas católicos, os muçulmanos, todos juntos. Os países europeus foram incapazes de impedir essa guerra. Temos também a questão da guerra de Kosovo, com a intervenção americana. Logo, a incapacidade política da Europa é um fato fundamental. Esses países que se formaram após a queda do império soviético foram aceitos nesse meio tempo pela Europa para buscar uma harmonia e manter uma condição econômica, mas não houve nenhuma unidade política. Logo, há uma heterogeneidade enorme. Tome, por exemplo, a segunda guerra do Iraque. Se olharmos para a intervenção americana contra Saddan Hussein, a França e a Alemanha foram contra essa guerra, entendendo que era arriscado desintegrar o Iraque sob um pretexto duvidoso, que eram as armas químicas. Então havia divergência entre os pontos de vista. Essas divergências permanecem e são múltiplas. Não há nenhuma unidade sobre a questão do Oriente Médio, sobre a questão da Palestina e de Israel, por isso a debilidade política da Europa é total. Então, chegamos à crise de 2008, que trouxe consigo a angústia, a perda do futuro. Não há nenhuma esperança no futuro, nenhum progresso nos meios mecânicos, nada que indique a retomada da identidade e do passado, e temos o desenvolvimento de países europeus de tendência nacionalista, por vezes xenófoba. Vemos que os interesses comuns da Europa já estão ameaçados, e podemos falar de mais dois eventos, com a Grécia e a Hungria. A Grécia tem imposto uma política, a meu ver, completamente absurda sobre o povo grego. As políticas de austeridade têm sido catastróficas. Começamos a compreender que lutar contra a crise é passar por uma retomada econômica, mas como isso é possível se as pessoas não têm dinheiro, não têm trabalho, não têm esperança? A Grécia está um caos terrível. De outro lado, a Hungria começou a se fechar como um sistema autoritário e antidemocrático. Portanto, a Europa está ameaçada e você bem notou que o euro também, que, apesar de ser uma moeda muito sólida, está ameaçada, pois não há uma autoridade, um banco central dotado de poder político. Então, estamos numa crise política muito ameaçadora. A Europa com a sua diversidade não foi capaz de conduzir sua unidade. A crise cria a ocasião para aqueles que querem dar um passo à frente, mas também permite que se dê um passo para trás. A crise é ambivalente, temos a progressão e a regressão. Não sabemos se continuará. As soluções encontradas até aqui não nos fazem crer que vai acabar. A Alemanha, por exemplo, se recusa quando se fala da revisão das dívidas, de solidariedade econômica...
Então, a Europa está duplamente ameaçada, ela pode sair da crise, mas o seu problema continua. Ela não pode consolidar sem se criar uma unidade econômica, e essa unidade econômica supõe a perda de parte da soberania em proveito da comunidade. Temos, portanto, incerteza e inquietude. Eu acrescentaria que a opinião pública não tem vez na Europa. Simplesmente o que se admite é o passado europeu, são seus símbolos. Mas eles são insuficientes. Não há um pensamento político na Europa, não há um renascimento como o do século XV. A meu ver, as probabilidades são ruins, mas sempre acreditei que o improvável é possível. Eu sempre estou pelo improvável. Então, eu espero pelo improvável.
FILOSOFIA ● Você disse no seu livro Um ano Sísifo que o seu amigo Milan Kundera se recusa a dar entrevistas, pois é frequentemente mal interpretado. Você acredita que existam ideias suas mal compreendidas ainda hoje?
Morin ● Sabe, Milan Kundera tem razão nisso, e ele conseguiu delimitar essas entrevistas; eu não pude fazê-lo e eu vou te explicar o porquê. Quando se escreve, o livro vira uma testemunha. O autor não é o livro, mas sempre temos muitos jornalistas, escritores que tentam compreender o pensamento do autor para decifrar o livro. Eu entendo que isso é uma dispersão e uma superficialização. Nós estamos numa época de jornalistas preguiçosos, que antes de fazer as críticas dos livros preferem entrevistar o autor. Eu mesmo sou um autor sempre convidado a falar dos meus livros. Mas, por outro lado, há bons e maus entrevistadores. Quais são os bons entrevistadores? Eu encontrei bons jornalistas na Folha e no Globo aqui no Brasil e no Clarín da Argentina. Os bons entrevistadores são os jornalistas cultos, que conhecem a minha obra e que não vão trair as minhas ideias. Mas há menos de um mês eu tive em Paris uma entrevista criminosa. Falei com uma jornalista e, quando ela me mostrou, havia cortado e preenchido passagens intermediárias com sua linguagem, e acabei perdendo 4 horas para corrigir a entrevista. Então há algumas entrevistas assim. Agora, por que eu continuo dando entrevistas? Porque a crítica de livros franceses não se interessa muito por mim. Há muitas razões: para os críticos, os escritores, os filósofos, os sociólogos, eu sou uma espécie de camaleão, não sou um escritor, não sou um filósofo, um sociólogo, não tenho forma, não tenho etiqueta, logo não inspiro interesse. Então, uma maneira de fazer as minhas ideias serem conhecidas é fazê-las passar também pelas entrevistas. Me sinto um pouco obrigado a dar entrevistas. Kundera disse muito sabiamente certa vez: "Um dia eu espero vir dogmático, mas isso eu ainda não sou".
Os filósofos continuam a
dizer que a Filosofia trata do pensamento, dos autores do passado e
alguns do presente. Eles estão fechados à Ciência
Morin ● Bom, no que me diz respeito, falando da França e de alguns outros países europeus, em geral os filósofos continuam a dizer que a Filosofia trata do pensamento, dos autores do passado, sobre alguns autores do presente, sobre alguns escritores. Eles estão fechados à Ciência. Da mesma forma, os cientistas desprezam a Filosofia por entendê- la como pura conversa vazia. Mas os filósofos dirão que os cientistas são superficiais. Então, nós temos uma fronteira. No meu caso, desde a minha juventude, tudo me interessa e isso inclui as enormes contribuições da Ciência ao conhecimento, pois a Ciência reformula nossa concepção do mundo. O cosmos não é mais o de Copérnico. A Ciência subverteu nosso senso de realidade material. Hoje nós sabemos muita coisa sobre o universo. Temos a Microfísica que recria o sentido de realidade. Essas são, de fato, questões filosóficas. Os avanços da Ciência chegam aos problemas filosóficos, mas os filósofos não se interessam por esse conhecimento. Alguns cientistas se interessam, sim, pela Filosofia, como Michel Cassé e alguns outros na França. Na Biologia, igualmente; hoje em dia nós sabemos que a vida é feita de moléculas, que são organizações complexas. Eu refleti muito sobre isso, inclusive trabalhei nesse assunto. Eu acho que a necessária comunicação entre pensamento e Ciência não existe. Isto é, a Filosofia é como um moinho para os grãos; a Ciência produz os grãos, mas não é capaz de moê-los. A Ciência não pensa a si mesma. Por isso eu me considero uma exceção, eu não sou como os outros filósofos. Mas, na realidade, e infelizmente, permanece a ideia de compartimentos e separação dos saberes. Como você sabe, o meu ponto de vista é pela complexidade. A complexidade religa os saberes separados para se compreender a realidade do mundo.
Morin ● Bom, para começar a curiosidade é própria das crianças, mas se os professores não têm paixão, se estão entediados, acabam arrefecendo a curiosidade delas. Creio que há dois problemas: uma coisa que diria Platão é que para ensinar é necessário amor, paixão. Essas condições não estão num manual, porém são fundamentais; o segundo problema é que precisamos relacionar as disciplinas múltiplas. Se você fizer a seguinte pergunta: "o que é o ser humano?" Essa é uma pergunta sobre os diversos saberes que temos em relação ao ser humano. Eu vejo que as ciências humanas estão dispersas, a Psicologia, a Sociologia. Também temos os conhecimentos que nos dá a Literatura, porque ela nos ensina sobre o ser humano. Podemos pensar também na Biologia, afinal de contas somos mamíferos, vertebrados, animais, nós somos fabricados biologicamente. E a Biologia é ligada à Física também, ao cosmos, porque nós somos feitos de moléculas, de átomos, de partículas, enfim, nós somos produtos de todos os conhecimentos. Se você ensina o que é o ser humano aos seus alunos, você os cativa. Eu acho que uma ciência muito interessante é a História. Um bom professor de História faz seus alunos se apaixonarem pela disciplina, pois é um saber muito interessante. Mas compartimentar os saberes em disciplinas torna o conhecimento menos interessante do que ele poderia ser.
FILOSOFIA ● Qual é o espaço do pensamento complexo em um mundo cada vez mais tecnológico?
Morin ● Bom, a complexidade foi formulada pela primeira vez entre matemáticos, engenheiros e cibernéticos. Foi o judeu alemão Norbert Wiener, o homem que descobriu o feedback positivo e negativo, a retroação negativa e utilizou a roda da complexidade para definir a grande variedade do sistema. Isso ficou isolado das ciências humanas e das ciências naturais. O mundo da tecnologia é predominantemente determinista porque a Cibernética se desenvolve do determinismo. Eu creio que nós estamos numa época em que a complexidade se impõe sobre a compartimentação. É um novo caminho para o mundo, para o ensino. Isso já acontece em alguns países da América Latina, o Brasil, por exemplo. Sobretudo é necessária uma mudança de estrutura mental. Em minha opinião, a mudança de estrutura mental é muito importante. De qualquer forma, felizmente há uma diversidade de pessoas em todas as sociedades. Hoje em dia, há muita gente que não está convencida com as ideias dominantes, há muita gente que não está satisfeita com o modo de conhecimento fragmentário e aspiram à complexidade. Eu vejo muita gente que foi tocada pela mensagem da complexidade, às quais pude convencer sobre essas ideias. Elas desejam isso, não estão satisfeitas, buscam a posse da verdade. Mas a reforma da estrutura de ensino é algo muito difícil de se realizar.
Felizmente, hoje há muita
gente que não está convencida com as ideias dominantes, com o modo de
conhecimento fragmentário e aspiram à complexidade
Morin ● É muito difícil definir a inteligência porque não é um quociente individual. A inteligência é um conjunto de qualidades muito diferentes porque necessita de capacidade de síntese, de análise e, no mínimo, de capacidade reflexiva e autocrítica. A inteligência necessita também de sensibilidade, porque a razão fria é muito limitada, mas uma paixão sem razão é muito limitada também. É necessária a mistura de razão e paixão. Então penso que a inteligência não tem uma definição simples. Há uma complexidade de elementos que permitem a inteligência. Há outra coisa que ultrapassa a inteligência, que é a capacidade de criar. A criatividade é algo em que é preciso capacidade intelectual, mental, cerebral. A possibilidade de fazer uma combinação nova, de fazer descobertas novas também exige inteligência. Por exemplo, Newton quando vê uma maçã cair, que é um acontecimento extremamente banal, é preciso estar livre da universidade e se permitir refletir. Perguntar por que a maçã cai é um ato de inteligência porque a inteligência é a capacidade de interrogar. Desse evento ele criou a teoria da gravidade. Então, a inteligência permitiu que essa admiração fosse uma corrente que o levasse à questão: por que existe o tempo, como ele acontece? Essa é uma pergunta banal, mas uma fez que ele a fez, ela o levou a uma teoria que pudesse fazê-la ser respondida. Então, a inteligência é a capacidade de admiração, de se inquietar, a curiosidade... muitas coisas se somam à inteligência, é um coquetel, e quando benfeito é como uma boa caipirinha.
Assim como opera em nós a
lógica do eu, eu, eu, temos a do nós. Eu sou; eu existo, mas eu posso
partir para algo maior e me sacrificar por isso
Morin ● Eu praticamente não abandonei nada, eu muito mais integrei, sob a concepção que eu entendo mais rica, a complexidade. Desde o início do meu primeiro trabalho importante, que se chama O homem e a morte - e que agora faz 63 anos de lançamento -, eu parti justamente da pergunta sobre o significado da morte. Eu pensava muito sobre isso quando eu frequentava a biblioteca nacional francesa à época. Eu pensei: devo começar pela pré-história porque temos as tumbas com os mortos, suas posições, suas armas para buscar alimentos. Temos a pré-história e as populações arcaicas. Sobre elas trabalharam etnógrafos para ver as crenças relacionadas à morte. Era necessário que eu estudasse as religiões, a História, a Psicologia - principalmente a Psicologia infantil no estudo da descoberta da criança em relação à realidade da morte -, a Psicanálise, com Freud, Jung. Era preciso que se fizesse uma viagem em todas as ciências humanas. A Literatura e a Poesia expressam coisas muito importantes sobre a morte e também temos informações na Biologia. Então, se há um tema importante, se há um tema fundamental e universal, somos obrigados a procurar e tentar encontrar uma resposta. Por exemplo, algo que pude perceber foi encontrar o heroísmo diante da morte. O que eu encontrava por todas as partes nessas civilizações era a capacidade desses indivíduos de dar a própria vida, de arriscar a vida pela família, pela pátria, pela religião, e isso é uma contradição. A maneira como eu tentei tratar essa contradição foi por uma concepção complexa do tema humano. Eu digo que o ser humano tem duas lógicas equivalentes de formação: uma é a lógica egocêntrica, eu sou o centro do meu mundo, eu estou no centro do mundo e esse pensamento é vital porque precisamos nos alimentar, nos defender etc. Quando estamos totalmente sós não só temos a atitude egoísta, temos também uma outra lógica, a do nós, da comunidade, do altruísmo - e isso a criança desde que nasce tem a necessidade do olhar, do carinho da mãe, dos pais, da comunidade. Então, assim como opera em nós a lógica do eu, eu, eu, temos a do nós. Eu sou; eu existo, mas eu posso partir para algo maior, mais grandioso, mais belo e posso me sacrificar por isso. Gosto muito de tratar dessas contradições. A partir desse livro, eu trato do tema complexo que é necessário buscar por todos os lados e uni-los, entender como as contradições podem ser religadas. Essa foi a minha maneira de ser. Eu não estava em nenhuma universidade quando fiz esse livro, eu estava desempregado. Tudo o que eu fiz desde então tem um viés sociológico, mas não somente sociológico, histórico, antropológico. Bom, mas o que eu abandonei na minha carreira? Quando eu era um adolescente, antes da Segunda Guerra, sabia sem saber da visão complexa sobre a Política, o homem político que eu admirava e dizia para todo mundo que era necessário lutar em duas frentes. À época, se dizia que era preciso lutar contra o fascismo e o stalinismo. Era uma época que havia uma crise da democracia, uma crise do capitalismo e onde o fascismo e o stalinismo eram pseudo-respostas. Havia pensadores que buscavam uma terceira via; nem o fascismo, nem o comunismo, nem a democracia corrompida que existia, nem o reino do dinheiro do capitalismo, era preciso uma terceira via. Bom, quando a guerra chegou e a França foi esmagada, não foi mais possível uma terceira via. Eu abandonei essa ideia e me converti a justificar o comunismo de Stálin. Eu encontrei dois argumentos que ainda hoje não os recuso e não os abandonei totalmente. Eu dizia pra mim mesmo que havia duas razões para isso: a primeira é uma incerteza capitalista que impedia a União Soviética de desenvolver as suas chamadas civilizações socialistas, e, segunda, o estágio da Rússia czarista e burocrata formado após a vitória. Um terceiro argumento viria da filosofia de Hegel, que é o conceito de astúcia da razão. Por exemplo, Napoleão era um ditador e ao mesmo tempo difundiu os ideais da Revolução Francesa na Europa. Eu pensei que Stálin era um ditador que difundiria os ideais comunistas. Essas ideias eu as abandonei e fiz críticas muito severas. Eu ainda penso que o argumento da incerteza capitalista traz parte da verdade, mas não é a própria verdade. O argumento sobre a herança czarista também é parte da verdade, mas não é toda a verdade, e a astúcia da razão também não é toda verdade. Então, eu cheguei e retornei à ideia de que se luta em duas frentes. Quais são as duas frentes hoje? São os dois tipos de barbáries, a barbárie atual da dominação do cálculo, do lucro, das finanças de todas as coisas, e a outra é a velha barbárie do ódio, do desprezo, do racismo, do massacre e da tortura. Essas duas barbáries estão ligadas uma à outra nos dias de hoje. Dessa forma, eu retomo a luta pela reforma, eu retorno às ideias da minha juventude. Não abandonei muita coisa, antes eu as integrei e as relativizei.
Sérgio Rodrigo Mélega é bacharel em Letras - Alemão/Português - pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Licenciado em Português na Faculdade de Educação da mesma universidade. Publicou artigo acadêmico na revista MELP
Fonte: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/78/artigo277295-1.asp#.UfHEO87HCPw.facebook
Comentários
Postar um comentário