Futebol e Ditadura Militar no Brasil

Brasil - 21/06/2012 02:46 Futebol e Ditadura Militar no Brasil
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Além de conduzir os militares ao poder, a nova ordem instituída após a queda do presidente João Goulart, em 31 de março de 1964, foi também decisiva para os rumos do futebol brasileiro. O Estado, reorganizado pelos novos donos do poder, estabeleceu a partir daí uma série de imposições disciplinadoras no universo esportivo. Uma dessas primeiras demonstrações, com vistas a enquadrar nosso futebol às novas diretrizes governamentais, foi o cancelamento, pela Confederação Brasileira de Desportos (CBD), de uma partida entre as seleções brasileira e soviética. A medida, que expressava o zelo anticomunista da chamada linha-dura no poder, desarticulou a aproximação esportiva do Brasil com os países do bloco socialista, iniciada pelos governos anteriores. Logo em seguida, foi a aproximação da Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, que passou a mobilizar o governo. Em princípio, nada havia a temer, pois o Brasil se apresentava como o grande favorito na competição. Chegou-se até a propor a confecção antecipada de uma nova taça - se chamaria Winston Churchill -, já que era dado como certo que a Jules Rimet voltaria com a delegação brasileira para casa, consumando a posse definitiva do troféu. Contrariando a expectativa, a Seleção apresentou um futebol muito aquém de 1958 e 1962 nos gramados ingleses, sendo eliminada nas oitavas-de-final pela seleção portuguesa. De volta ao Brasil, nossos jogadores desembarcaram no Aeroporto do Galeão, vigiados por agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI), um dos órgãos da repressão mais atuantes da ditadura.  

Acalmados os ânimos e demovidas as intenções governamentais de formar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o fracasso brasileiro na Inglaterra, João Havelange, presidente da CBD, impôs uma série de mudanças na estrutura da Seleção, principalmente a partir da criação da Comissão Selecionadora Nacional (Cosena), estrutura esportiva claramente inspirada no modelo militar que caracterizava a política brasileira no período. Sofrendo a pressão de interesses, clubes, dirigentes, federações, o órgão não conseguiu os resultados que dele se esperava, uma vez que a seleção brasileira colecionou uma série de maus resultados em uma excursão feita à Europa, coroando o fiasco com uma derrota para o México, em pleno Maracanã, no Rio de Janeiro. Dissolvida a Cosena, Havelange procurava acertar a seleção brasileira a qualquer preço. Nesse sentido, sentido, nenhuma estratégia era descartável, até mesmo a possibilidade de contratar um técnico contrário aos valores golpistas, que ainda àquela altura a propaganda governamental insistia em chamar de valores revolucionários. Foi nessas circunstâncias que o jornalista e radialista João Saldanha assumiu a Seleção, sendo bombardeado por todos os lados.

 Os paulistas lamentaram que a CBD tivesse se rendido a um carioca, enquanto os militares mais conservadores também falavam em rendição, só que a um comunista. Em outro plano, jornalistas surpresos e técnicos que cobiçavam o cargo insistiam em que Saldanha era bom de microfone, mas que treinar uma equipe de futebol, ainda mais com os problemas que enfrentava a seleção brasileira, era coisa muito diferente. Assumindo o cargo, o novo técnico fez bom uso da geração privilegiada de jogadores que tinha em mãos e angariou uma série de triunfos, aproximando a Seleção do homem comum, dos militares e até mesmo dos militantes de esquerda. Estádios ficaram lotados e o Hino Nacional voltou a ser cantado sem a pecha de adesão à ditadura que passou a caracterizá-lo a partir de 1964. Uma pesquisa feita no Rio de Janeiro apontava a popularidade de Saldanha: 71%. Os paulistas, enfim rendidos ao bem-sucedido desempenho do técnico, não ficaram muito atrás: 68%. Mesmo com estes índices, por mais que Saldanha estivesse consolidado no cargo, as tensões políticas cresciam em um país marcado pela repressão, que viera à tona na esteira do AI-5, de dezembro de 1968. Detentor do bicampeonato, o futebol brasileiro não podia passar incólume pela obsessão legitimadora que o governo militar perseguia permanentemente, passando a interferir cada vez mais nas esferas do esporte. Futebol e política se encontrariam quase sempre nos meses seguintes, logicamente com atritos crescentes entre o técnico e o governo federal.

Este, aliás, passando por atribulações desde o dia 27 de agosto de 1969, quando o presidente Costa e Silva sofreu o que se diagnosticara como um acidente vascular cerebral. Viajando para o Rio de Janeiro - um cachecol no pescoço sugeria gripe, mas escondia a paralisia do lado direito da face -, o presidente foi encaminhado ao Palácio Laranjeiras. Em poucas horas, entraria em estado de coma, abrindo uma grave crise governamental. Seu vice, o político mineiro Pedro Aleixo, não era encarado como homem de confiança pelos militares, o que tornou necessária uma solução imediata para o caso, encaminhado para o comando das Forças Armadas. No dia 31 de agosto, o Ato Institucional nº 12, que transferia os poderes presidenciais para uma Junta Militar, foi anunciado à nação. Talvez não tenha sido mera coincidência que neste mesmo dia, no Maracanã, o Brasil jogasse sua última partida das eliminatórias para a Copa de 70. Pouco antes de a Seleção entrar em campo, já circulava no estádio o boato de que alguma coisa acontecera ao presidente Costa e Silva. Enquanto alguns falavam em gripe e outros em infarto, havia quem dissesse que o presidente já estava morto, apesar do governo não se pronunciar oficialmente. Segundo o jornalista João Máximo, biógrafo de João Saldanha, o general Elói Menezes, presidente do Conselho Nacional de Desportos (CND), procurou o técnico antes do jogo: - Saldanha, o presidente Costa e Silva acaba de falecer - teria dito. - O que acha de prestarmos a ele um minuto de silêncio antes do jogo? Saldanha fez-lhe ver que não era boa idéia. Maracanã cheio, decisão com Paraguai, Hino Nacional, clima de festa, tudo aquilo. Melhor não. Citava o amigo Nelson Rodrigues: "No Maracanã vaia-se até minuto de silêncio". A acreditar-se em Saldanha, depois foi desmentido pelo general, o anúncio no Maracanã da morte do presidente (que ainda estava em coma) seria o balão-de-ensaio da ditadura para testar a reação popular diante de uma notícia que envolvia os rumos do governo. Sem minuto de silêncio ou pronunciamento oficial, o público que foi ao estádio viu o que de fato queria. A seleção brasileira venceu o Paraguai por 1 a 0 - gol de Pelé.

A classificação do Brasil sugeria que o treinador tinha agora um período de estabilidade pela frente, preocupando-se apenas com o Mundial do México. De fato, poderia ter sido assim, mas não foi. Ao mesmo tempo em que a repressão política aumentava, a relação entre o esporte mais popular do país e a política se intensificou. Emílio Garrastazu Médici, que tomou posse como presidente da República no dia 30 de outubro de 1969, sucedendo a Costa e Silva, era um apaixonado pelo esporte, a ponto de interromper reuniões ministeriais para saber os resultados dos jogos. Grudado no radinho de pilha - imagem que o aproximava do "homem comum" -, o novo presidente se arriscou várias vezes a freqüentar estádios lotados, não raro tendo sua presença anunciada pelos alto-falantes. Promovia-se assim uma importante estratégia de propaganda da Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência (AERP), no sentido de transformar o general Médici em torcedor número 1 da nação, articulando os trunfos futebolísticos à imagem de Brasil-potência que o governo se esforçava em difundir.

À medida que a Copa de 1970 se aproximava, as possibilidades da interação futebol-poder se ampliavam. Ainda em 1969, apresentou-se uma oportunidade sem igual para o governo: a festa comemorativa em torno do milésimo gol de Pelé, conquistado pelo craque em novembro, no Maracanã, em partida contra o Vasco. Nos dias seguintes ao seu feito sensacional, Pelé desfilou em carro aberto em Brasília, sendo recebido pelo presidente Médici, que lhe concedeu a medalha de mérito nacional e o título de comendador. No jogo seguinte do Santos no Mineirão, o atleta recebeu uma coroa de ouro do tempo do Império, ao mesmo tempo em que era produzida uma infinidade de marcos comemorativos, como medalhas, selos, bustos, placas e troféus. Enquanto os ecos do milésimo gol ainda se faziam ouvir no mundo todo, disputando espaço com a epopéia do homem na lua em todas as retrospectivas de fim do ano, 1970, pelo menos no campo esportivo, foi aberto sob o signo da expectativa. Médici assinava o decreto que instituía a Loteria Esportiva no país, procurando conciliar o esporte com a sorte, o enriquecimento fácil e a chance de mobilidade social para todos. Válido inicialmente para Rio de Janeiro e São Paulo, o presidente prometia que até a Copa o jogo lotérico seria ampliado para todo o Brasil. A Seleção, entretanto, vinha acumulando uma série de problemas, entre derrotas em amistosos, polêmicas com outros treinadores, e divisões internas. Tudo parecia conspirar contra a tranqüilidade que Saldanha precisava para trabalhar o time, ainda considerando-se que não contava com uma comissão técnica de sua inteira confiança.

 Para tumultuar ainda mais o ambiente, veio à tona toda uma polêmica envolvendo o artilheiro Dario, jogador que encantava o próprio presidente Médici, que, aliás, na sua paixão pelo futebol, também admirava o esquema de jogo de Saldanha e os resultados obtidos nas eliminatórias. Dizia-se que o presidente queria ver o jogador na Seleção Na verdade, se tudo estivesse correndo bem nas quatro linhas, possivelmente o caso Dario não ganhasse a projeção que ganhou. Mas com o time em desacerto, tudo era motivo para o questionamento, levando Saldanha a retrucar as opiniões que os repórteres diziam ser do presidente com a mais célebre de suas tiradas: "Pois olha: o presidente escala o ministério dele que eu escalo o meu time". Não se sabe ao certo se Médici estava tão empenhado na escalação de um jogador específico, em um momento em que os desafios governamentais eram muito grandes. Certo sim é que a figura de Saldanha era considerada muito inconveniente pelo seu destempero e por sua propalada independência política. Temia-se que o treinador chegasse ao México com uma lista de presos políticos no bolso, e, em entrevista coletiva, diante de microfones e câmeras do mundo todo, denunciasse o desrespeito aos direitos humanos que vinha ocorrendo no Brasil. Mais do que Dario ou episódios envolvendo outros jogadores e técnicos, esta era uma preocupação muito séria para a imagem que a ditadura queria promover de si mesma no exterior. E como bem ou mal Saldanha era popular, pretextos paralelos ganharam mais projeção do que deviam, condicionando a queda do treinador principalmente a problemas com Pelé, com Yustrich - técnico que cobiçava o cargo - ou com um amistoso contra o Bangu, em que a seleção brasileira jogou muito mal.

Alguns dias depois a comissão técnica foi "dissolvida" e Mário Jorge Lobo Zagallo, que treinava o Botafogo, foi apresentado como sucessor de Saldanha. Com as transformações na comissão técnica, João Havelange tinha agora o caminho aberto para a militarização da delegação que conduziria o Brasil ao México. Esta era chefiada pelo major-brigadeiro Jerônimo Bastos, com a segurança ficando a cargo do major Ipiranga dos Guaranys, além de contar ainda com os militares Cláudio Coutinho, Raul Carlesso e José Bonetti, alguns deles integrantes da antiga Cosena. Cabelos cortados no estilo da caserna, preparação física coordenada por militares, contraditoriamente a Seleção se transformaria, dentro de campo, em paradigma do verdadeiro futebol-arte que tanto se fala desde então.A cada vitória, uma aclamação popular que parecia legitimar o próprio regime. Tudo indica que a Presidência fez questão de aproveitar o embalo da seleção brasileira para anunciar à nação o projeto da Transamazônica em junho de 1970, temendo talvez que o encanto propiciado pelo fantástico desempenho da Seleção no México se quebrasse. Consumada a vitória, o governo explorou o tricampeonato de todas as formas possíveis, procurando potencializar o futebol como um fator capaz de promover a "unidade na diversidade".

 Os responsáveis pela AERP, entretanto, não encontrariam maiores dificuldades em convencer as autoridades da importância do momento. Paralelamente ao presidente Médici, que recebeu todos os jogadores em Brasília antes de qualquer outra autoridade, já que a delegação voou direto do México para a capital, instituindo feriado nacional para valorizar a recepção, não foram poucos os governadores, prefeitos e vereadores que fizeram de tudo para posar do lado dos craques. Para os mais diretamente ligados ao governo, repetir o discurso oficial era fácil, uma vez que bastava relacionar o desempenho da Seleção ao momento de euforia econômica que se convencionou chamar de "Milagre Brasileiro". Em 1971, como demonstração que a interação futebol-poder para a ditadura não se limitaria à Copa do Mundo, tinha início um campeonato com clubes da maioria dos estados brasileiros, substituindo a fórmula anterior que só agregava os cinco maiores estados da federação. Paralelamente, estádios eram inaugurados em todo o Brasil, geralmente com a presença de autoridades do governo, em muitos casos do próprio presidente. Morumbi, em São Paulo; Rei Pelé, em Maceió; Castelão, no Ceará, além de vários outros, eram monumentos que aproximavam o governo do conjunto da população, enquadrando-se no modelo de grandes obras que marcava o período. Em 1972, procurando ainda canalizar a fórmula do tricampeonato, tão satisfatória para o governo, João Havelange organizou a Taça Independência, comemorando o sesquicentenário da Independência do Brasil e pavimentando seu caminho para a presidência da Federação Internacional de Futebol (FIFA).

Vinte seleções atuaram nesta verdadeira Minicopa, embora Alemanha, Inglaterra e Itália não participassem, afirmando que a competição possuía fins políticos que se sobrepunham aos esportivos. Pelé também se negou a jogar, alegando que sua imagem vinha sendo utilizada pelo regime para legitimar a ditadura no exterior. Sem empolgar a nação como o governo esperava, a competição teve um jogo emblemático: Brasil e Portugal. Cento e cinqüenta anos depois, Colônia e Metrópole se encontravam, marcadas por um trágico destino comum: os dois sob governos ditatoriais - Portugal ainda vivia sob o regime salazarista. Apesar de não ter jogado a Taça Independência, Pelé foi uma figura central na eleição de Havelange para a FIFA. Desde o final dos anos 60, a relação entre os dois vinha se estreitando, muito em parte em função das necessidades financeiras do jogador, que perdera um bom dinheiro em uma série de negócios realizados em Santos. Em 1969, em um dos lances mais citados da carreira do Rei, Havelange organizou uma excursão da equipe santista à África, já pensando nos votos que poderiam ser colhidos nas federações africanas. Após passarem por diversos países, o pretendente ao cargo maior da FIFA divulgou a história de que o carisma de Pelé interrompera a guerra civil na Nigéria, versão até hoje repetida como demonstração não só do mito em torno do jogador, mas também da capacidade de conciliação que o esporte pode propiciar.

Posteriormente, à medida que a relação entre os dois foi esfriando, Pelé apresentou uma versão um pouco menos romântica da história. "Nós jogamos na capital da Nigéria [a região de Biafra estava em guerra, iniciada em 1967 e encerrada três anos mais tarde], e o que aconteceu foi que o governo destacou um baita contingente militar para nos proteger, impedindo que a cidade fosse invadida enquanto estivéssemos lá." Em 1974, quando Havelange conseguiria ser finalmente eleito para a FIFA, vencendo o então presidente Stanley Rous, o desgaste com o governo militar, já na presidência de Ernesto Geisel, chegou ao auge. A esta altura, tanto o dirigente como Pelé eram vigiados pelo DOPS, um dos braços repressores do regime. Em janeiro de 1975, Havelange acabou finalmente sendo afastado da CBD, tendo o comando da entidade passado para o almirante Heleno Nunes. Neste novo quadro, a interferência do governo ditatorial no esporte ganharia ainda mais relevo. Foi daí que surgiu a máxima, atribuída à administração de Nunes, sobre as relações entre o futebol e a Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido do governo: "Onde a Arena vai mal, um time no Nacional". Revista Nossa História, nº. 14, dezembro 2004 Gilberto Agostino é historiador associado ao Laboratório de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Vencer ou morrer, futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro: Mauad, 2002. Redes Sociais Siga o Prof. Delzymar no Twitter e fique atualizado Adicione o Prof. Delzymar no Facebook Adicione o Prof. Delzymar no Orkut Inscreva-se no canal do Prof. Delzymar Adicione o Prof. Delzymar no MSN: profdelzymar@hotmail.com

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