Babel indígena
Arqueologia e linguística podem ajudar a revelar origem e trajetória dos tupis e guaranis, que se dispersaram pelo território que se tornaria o Brasil
Andreas Kneip e Antônio Augusto S. Mello
1/4/2013
Gravura da obra de Hans Staden, que esteve no Brasil no século XVI. Os povos que habitavam o Brasil no início da colonização eram diversos, e uma das provas era a sua diversidade linguística. (Fundação Biblioteca Nacional)
Gravura da obra de Hans Staden, que esteve no Brasil no século XVI. Os povos que habitavam o Brasil no início da colonização eram diversos, e uma das provas era a sua diversidade linguística. (Fundação Biblioteca Nacional)
Aocupação humana do território brasileiro começou há mais de 10 mil anos. Quando os europeus chegaram, na virada para o século XVI, havia povos espalhados do Planalto das Guianas ao Pampa gaúcho, do interior da Amazônia ao litoral. Embora chamados genericamente de “índios”, eram povos diferentes. E a mais evidente prova disso era sua diversidade linguística.
Estudar a história das línguas indígenas ajuda a entender não apenas sua origem comum, mas também os caminhos que esses povos percorreram para se espalhar pelo território. Os linguistas históricos e os arqueólogos já chegaram a diversos consensos sobre o tema de difícil estudo pelos métodos tradicionais da história, uma vez que não há registros escritos para épocas anteriores à presença portuguesa. Mas persiste alguma polêmica. Afinal, qual foi a trajetória dos povos indígenas antes da formação do que conhecemos como Brasil?
A linguística histórica é uma disciplina anterior à própria linguística. Surgiu no século XIX, desenvolvendo métodos para mostrar que línguas com palavras e padrões gramaticais semelhantes são oriundas de uma mesma protolíngua – sendo “proto” o que veio antes. Não por acaso, a área utiliza termos que remetem à biologia geneticista, ciência que também nascia naquela época: línguas de uma mesma “família” (como a românica ou a tupi-guarani), famílias de um mesmo “tronco” (como o indo-europeu ou o tupi). Essas classificações permitem traçar as árvores genealógicas das línguas, inclusive as indígenas sul-americanas.
No século XVI, um dos grupos de maior população e extensão territorial era o dos povos que se convencionou chamar de tupi-guarani. Eles se espalhavam desde o que é hoje a Argentina até a Guiana Francesa, do litoral brasileiro à Amazônia peruana. Eram vários povos, mas todos vindos de uma mesma família linguística: tupi-guarani. Onde eles começaram a se separar?
A dispersão de uma família linguística acontece mais provavelmente a partir de pequenas áreas em que há uma diversidade considerável de línguas. Este é um indício de que esta região foi ocupada há mais tempo. Das dez ramificações do tronco tupi, seis famílias têm representantes na região das cabeceiras dos rios Madeira, Mamoré e Guaporé, onde hoje fica o estado de Rondônia. A grande concentração de línguas isoladas torna essa região a candidata para a origem do tronco tupi.
A partir de lá, houve uma primeira cisão dos povos do tronco tupi e, segundo a visão tradicional, a divisão entre os grupos da família linguística tupi-guarani, com os subgrupos guarani e tupinambá, de um lado, e o tupi-guarani amazônico, do outro. A hipótese tradicional dos linguistas é de que os guaranis e os tupinambás saíram dessa região, que é atualmente o estado de Rondônia, e seguiram para sul, descendo as bacias dos rios Paraguai e Prata, e depois para o leste, rumo ao litoral. Já os tupis-guaranis amazônicos migraram para o leste até o meio-norte brasileiro, região onde hoje está o estado do Maranhão.
Outra proposta considera que a migração no sentido sul dos povos que formariam os guaranis e os tupinambás teria ocorrido em duas levas em separado: a de povos protoguaranis e a de povos prototupinambás. A primeira, dos protoguaranis, teria se dividido algumas vezes. Um ramo entrou na Bolívia. Outro seguiu para o sul até a bacia dos rios Paraná e Uruguai. Deste segundo ramo, alguns grupos acompanharam os rios Paranapanema e Uruguai para o leste, chegando enfim ao litoral. Já os prototupinambás teriam descido o rio Paraguai, mas rumaram para o leste, um pouco mais ao norte do que os guaranis. Eles teriam seguido os rios Grande e Tietê, alcançando o litoral onde hoje é São Paulo, e depois ocupado a costa do sul para o norte. Por essa versão, os povos tupis-guaranis que não saíram da Amazônia migraram para o leste, mas não pelos grandes rios, e sim por seus afluentes (que muitas vezes quase se emendam), chegando ao Maranhão e ao Centro-Oeste.
Estudos arqueológicos, por sua vez, apontam para outra direção. A partir da análise de cerâmicas, indicam como centro de origem da família tupi-guarani a região de confluência do rio Madeira com o Amazonas, ainda dentro dos limites daquele que hoje reconhecemos como o estado do Amazonas. A partir desse local, uma cisão teria resultado, grosso modo, em duas rotas de expansão. Um grupo origina os tupinambás. Eles migram em direção ao leste, pela boca do Amazonas, até encontrar o oceano. De lá, descem pela costa até o litoral de São Paulo, ou seja, do norte para o sul. Outro grupo, que daria origem aos guaranis, teria de início subido o rio Madeira para o interior da Amazônia e, então, descido pelo rio da Prata, até chegar ao litoral sul do Brasil.
Esta teoria arqueológica é reforçada por uma terceira visão, novamente linguística. Apesar de Rondônia ter a maior diversidade linguística do tronco tupi, há apenas um subconjunto tupi-guarani, e com línguas bastante semelhantes. A maior diversidade linguística da família tupi-guarani está mais para o leste amazônico, portanto, seguindo esse raciocínio, teria partido de lá a dispersão. A migração de tupinambás deve ter se dado no sentido norte-sul, novamente, por povoações não muito afastadas umas das outras, formando uma área contínua, em conjunto com outros grupos tupis-guaranis localizados no leste amazônico e no meio-norte. De fato, quando os europeus começaram a povoar a América do Sul, os tupinambás ocupavam cerca de três quartos do litoral que hoje corresponde ao Brasil: do Maranhão até São Paulo. As diferenças linguísticas entre o norte e o sul eram mínimas, o que sugere uma rápida dispersão.
Outra evidência a favor da hipótese de dispersão a partir do leste amazônico é o possível contato de povos tupis-guaranis com povos caribes. Seja qual for a região de origem dos caribes – no maciço das Guianas (mais citada) ou no Brasil central (segundo o alemão Karl von den Steinen, em viagens entre 1884 e 1887) – o eixo de migração destes indígenas foi na direção norte-sul ou sul-norte, entre as Guianas e Mato Grosso, não passando pela área prototupi (na região do atual estado de Rondônia). Se houve um contato entre tupi-guarani e caribe, ele só pode ter acontecido no leste ou no meio-leste amazônico. Esta hipótese é aventada devido a semelhanças no vocabulário e em algumas estruturas gramaticais.
Além disso, outra informação que sugere a migração em períodos separados de guaranis e tupinambás para o sul é a continuidade da área guarani na região central da América do Sul (Bolívia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), em direção aos estados do sul do Brasil, e que chega ao litoral. Se os tupinambás tivessem seguido rota de migração semelhante (pelo menos na parte que desce os rios Paraguai e Paraná), deveria haver vestígios no caminho. A interiorização de uma língua derivada do tupi, a “Língua Geral Paulista”, só aconteceu após a chegada dos europeus, principalmente com os bandeirantes.
Diferenças linguísticas importantes também mostram a separação entre os guaranis e os tupinambás. Entre os tupinambás e nas línguas amazônicas, abóbora é chamada por variações (cognatos) de jurumu, uma protoforma tupi-guarani. Nas línguas guaranis, houve uma diferenciação lexical, e esses grupos passaram a chamar abóbora de anai (e seus cognatos). O mesmo percurso aconteceu com as palavras que designam morcego: entre os tupinambás e nas línguas amazônicas, usam-se cognatos de anyrá (o y representa a vogal central alta não arredondada), enquanto as línguas guaranis têm cognatos de mopy. Anta, para os tupinambás e as línguas amazônicas, é tapi?ir (o ? representa a oclusiva glotal), enquanto as línguas guaranis têm morevi. Para o guariba, uma espécie de macaco, os tupinambás e os amazônicos usam wariB (o B representando a fricativa bilabial sonora), enquanto as línguas guaranis dizem karaja.
Por estas evidências, é possível supor que alguns subconjuntos de línguas da família tupi-guarani teriam voltado à área de dispersão dos prototupis, o que nos leva a pensar em um movimento de fluxo e refluxo de alguns povos indígenas. Teria acontecido um movimento tupi-guarani para o leste amazônico, depois um movimento protoguarani de volta para Rondônia e, enfim, a divisão que originou os vários povos guaranis.
É no diálogo entre linguistas, arqueólogos, paleoclimatologistas e geneticistas que as hipóteses de origem e dispersão ainda nos ensinarão muito a respeito dos antigos povos indígenas.
Andreas Kneip é professor da Universidade Federal do Tocantins e autor, com Antônio Augusto de S. Mello, de “Diálogo arqueologia-linguística: origem e dispersão Tupi-Guarani” (Atas do XIII Congresso da SAB, UFMS, 2005).
Antônio Augusto S. Melloé professor da Universidade de Brasília e autor da tese “Estudo comparativo da família linguística Tupi-Guarani: aspectos fonológicos e lexicais” (UFSC, 2000).
Saiba mais - Bibliografia
CUNHA, M. C. (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Fapesp, Cia. das Letras,Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
TENÓRIO, Maria Cristina (org.). Pré-história da Terra Brasilis. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000.
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