Voz calada do povo
Em um Chile em crise, o músico Victor Jara compunha canções que representavam o sentimento popular. Foi acolhido nas áreas pobres, mas assassinado pela ditadura, que conseguiu extinguir a longo prazo este tipo de manifestação cultural
Nashla Dahás
11/9/2014
"Eu sinto e não sei o que sinto; suspiro e não sei por quem; sinto um fogo que me abraça, como apagá-lo eu não sei; sou como a mariposa que voa ao redor da vela; ainda que me queime as asas, hei de ser tua sentinela; Dizem que o amor é branco, se é verdade eu não sei; Mas advirto que em meu peito suspiro e não sei por quem". A canção popular chilena foi gravada em 1961 pela banda Cuncumén, da qual o cantor Victor Jara fazia parte. As letras simples e de melodias folclóricas se misturavam a outras mais explicitamente engajadas. Liberdade, amor, e história ou tempo eram temas centrais, apresentados de forma despretensiosa e muitas vezes comovente. Segundo o historiador Gabriel Salazar, desde queo Chile iniciou sua vida independente, o "baixo povo" já estava preso, proibido de manifestar-se nas ruas e praças públicas. O carnaval, chamado la challa, foi excomungado justo quando essas pessoas não tinham trabalho estável nem reconhecimento social como cidadãos; a população mestiça passava por processo estigmatização e desterramento, todos classificados como vagabundos. O impulso natural para a associação, potencializado por essa exclusão, encontrou lugar apenas no ambiente privado, comunitário, rancho adentro. Seguiu-se a repressão moral policial, ou a opressão pela via do mercado (exclusão), que, gradualmente, foram extinguindo as formas de expressão cultural popular. Diz Salazar que até 1890 essas expressões teriam mesmo desaparecido.
Vida e morte de Jara
Foi nesse intervalo, porém, que Victor Jara se tornou conhecido. Diretor de teatro e professor universitário; viu suas canções ganharem a forma de representações do sentimento popular chileno e foi acolhido nas áreas mais pobres do país. Sempre acompanhado de um violão, circulam hoje versões sobre sua morte que incluem um capítulo em que os militares arrancam as suas unhas e depois cortam partes da ponta de seus dedos para que ele nunca mais possa tocar. "Victor tocava com a pele dos dedos e não com as unhas, tinha uma técnica própria e continuou tocando e desafiando a ditadura a calar o nosso povo", contam alguns. Dizem outros que ele teveas duas mãos quebradas e posteriormente decepadas. Joan Jara, a viúva do cantor, afirma que o oficial que coordenava a sessão de tortura ainda teria mandado sadicamente que ele cantasse depois disso. Jara teria levantado e cantado "Venceremos", um dos hinos dos movimentos revolucionários chilenos e das mobilizações dos anos 70. Amigos que estiveram com ele no campo de concentração do Estádio Nacional, por sua vez, dizem que ele foi um dos primeiros a serem espancados publicamente, e depois seu corpo só tornaria a ser visto morto numa das primeiras levas de corpos que saíram do estádio no dia 16 de setembro de 1973, menos de uma semana após o golpe civil-militar que levou o general Augusto Pinochet ao poder.
Disputas de memória
Mitos, depoimentos, memórias individuais e coletivas; esses fragmentos de histórias do golpe e da ditadura, são hoje elementos de uma crise moral republicana que, a cada dia, experimenta formas de lidar com essas lembranças. Numa situação aparentemente semelhante ao que ocorre no Brasil, os dados oficias atuais chilenos indicam que a pobreza diminuiu. Bons automóveis lotam as ruas e os pobres podem andar com sapatos e celulares de marca (os sapatos são símbolos importantes em razão do frio na maior parte do ano). Esse tem sido o legado econômico da ditadura, o "extremismo liberal" para alguns intelectuais como o citado Gabriel Salazar, e, ao mesmo tempo, o "desenvolvimento", a saída de uma situação de atraso camponês que caracterizava o país, para a posição de modelo neoliberal para a América Latina, segundo outros grupos de intelectuais e parte das classes médias.
Onde foi parar o "mal estar interno" sobre os qual as músicas de Victor Jara falavam e ou traduziam; ou a ira que caracterizou grupos políticos como o Movimiento de Izquierda Revolucionario, a unir teorias e fuzis em nome de um projeto de nação alternativo ao que se vivia; ou ainda o empoderamento de camponeses, mapuches, e, "pobladores" (favelados), que tomavam terras e expropriavam fábricas; ou mesmo a experiência política do Chile de Allende com sua via política legal e pacífica para o socialismo? Essa sensibilidade parece ter perdido seu sentido em nosso mundo. Foi morrendo aos poucos, não só porque banida violentamente durante o período ditatorial, mas porque nas novas democracias latino americanas dos anos de 1990, não encontrou qualquer lugar. Algo, decididamente, alterou a organização geral, a arquitetura e a perspectiva da existência social chilena. Buscar os significados dessa transformação pode ser uma longa e instigante tarefa que pode começar individualmente.
Isso porque a dificuldade de lembrar criticamente a ira no plano institucional se reflete e é refletida pela maneira como individualmente este passado é ressignificado. No Chile, o filme No, do diretor chileno Pablo Larrain, produzido em 2012, com o ator mexicano Gael García Bernal, dá conta exatamente de como esta dimensão do esquecimento foi utilizada como arma de convencimento da população para decidir sobre a continuidade ou não da ditadura Pinochetista. A chamada “zona cinzenta” de indecisos, classes médias e setores menos ideologizados teria, segundo o longa, se posicionado em favor do No muito mais como a forma encontrada de se livrar de uma vez por todas das lembranças de violência, pobreza e repressão. Era chegada a hora de um novo tempo, democrático, leve e moderno. A memória radical foi necessariamente retirada do plano da crítica individual e social.
Perguntando-nos hoje se algo como a “Unidade Federativa das Nações Latino Americanas sob o regime socialista” defendida por alguns movimentos políticos chilenos nos anos 60 e 70 era possível, a resposta tenderá a ser negativa e a ideia provavelmente parecerá muito mais velha do que realmente é. Talvez isso decorra do empenho, em parte bem sucedido, das ditaduras latino-americanas em construir uma memória desqualificadora do pré-golpe, em eliminar os seus vestígios humanos e institucionais. Ou ainda, talvez resulte do efeito que o fracasso das guerrilhas causou em alguns de seus líderes, convertidos voluntariamente nas décadas seguintes, ou, talvez, sob tortura, em novos adeptos das democracias capitalistas. Não convém, entretanto, aprofundar-nos nestas questões, mas denunciar e, se possível, conceituar a ação do terrorismo de Estado, e a dor pelos mortos, o temor e a passividade gerados pela violência golpista, não apenas no Chile, mas também no Brasil.
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