Reportagem no mínimo tendenciosa
Aninha Franco: ACM e a política cultural
Até os anos 1950, quando Mangabeira e Edgar
Santos criaram as escolas de Arte na Bahia, a produção artística e o
entretenimento eram práticas amadoras. Salvador não dispunha de bons
espaços para a recepção. Espectar era desconfortável. As escolas de arte
fomentaram a profissionalização artística e a inauguração de espaços,
como o Vila Velha, que lançou carreiras musicais e cênicas, o Castro
Alves e o Acbeu.
O contato com os mestres das escolas impulsionou
criadores e criações, mas inexistia infraestrutura profissional,
indústria fonográfica, polo de cinema, produção teatral, e os criadores
migravam em busca de trabalho e sobrevivência. Nos anos 1970, a política
cultural de ACM iniciou a criação dessa estrutura, mas, a partir de
1983, ela sofreu quebra de continuidade por oito anos e, em 1979, perdeu
João Augusto, uma espécie de bússola da vida intelectual da cidade.
Sua morte e oito anos sem políticas culturais podem elucidar o vazio produtivo da primeira metade dos anos 80, recuperados com a axé music, em 1986; com as produções cênicas de Dourado, Guerreiro e Franco, de 88 a 90; com o cinema de Navarro e outras culturas produzidas por artistas.
Em 91, quando ACM volta ao governo, a situação era
de “passado o Carnaval, Salvador entra em trevas profundas em se
tratando de acontecimentos artístico-culturais” (Beauvoir, 1990). A
volta de ACM, que se prolongará até 2006, com vários gestores, retomou a
construção da profissionalização cultural na cidade.
Entre março e dezembro de 1991, não aconteceu nada.
Em entrevista, Buriti me declarou que, durante seis meses, esperou a
chegada de projetos e artistas, mas não apareceu ninguém. As relações
entre criadores e governo estavam deterioradas por falta de uso, já que
política cultural foi uma prática quase exclusiva das gestões carlistas.
“Em 1991, a autoestima de Salvador estava abaixo de
qualquer nível. Por isso, na chegada, foi feito um trabalho de
recuperação da autoestima, do orgulho de ser baiano, das Coisas da
Bahia, com Daniela Mercury, Brown, gastronomia de Dadá, Nizan, Duda
Mendonça, Sérgio Amado e Patinhas, publicitários baianos, processaram a
baianidade” (Gaudenzi, 2005).
E, já em 1992, a baianidade havia voltado a relevar
o Estado e começado a equilibrar suas contas com o turismo. ACM era o
garoto-propaganda do projeto. Em janeiro, um ônibus com turistas
argentinos foi assaltado. O governador exonerou o secretário da
Segurança, desculpou-se com os assaltados em Ondina e assumiu os
prejuízos. Com isso e outros aquilos, em fevereiro, ACM tinha a
aprovação de 71% dos baianos. Em março, a aprovação subiu para 91%. E o
Ibope mostrou, também, que 74% dos baianos confiavam mais em ACM do que
na Igreja e na Justiça.
Jorge Amado foi homenageado em seus 80 anos com
exposições, prêmios, publicações, condecorações e um show no Largo do
Pelourinho. O Quarteto de Madeiras da Orquestra Sinfônica da Bahia se
apresentou no Ilê Axé Opô Afonjá. Jovens atores baianos integraram o
cast das novelas globais. E foram criados projetos para todos os gostos:
Palco Bahia; Viva Esta Festa; Temporada de Verão; Festi´n Bahia, que
apresentou o mangue beat ao Brasil; Terça da Boa Música; Cantos e
Encantos no Abaeté, Domingo no Abaeté, shows ao meio-dia na Praça
Quincas Berro D’ Água; Sua Nota É um Show; e o Julho em Salvador, que
seduziu artistas como Nehle Franke a mudar de endereço: “Foi a primeira
vez que vi Salvador, e a cidade estava repleta de espetáculos. Fiquei
impressionada e me mudei pra cá” (Nehle Franke)
As lambaterias paulistas substituíram o ritmo que
lhes deu o nome pelo axé. Daniela, Chiclete, Olodum, Ara Ketu, Brown,
Ilê Aiyê, todos sediados em Salvador, rapidamente se internacionalizaram
dentro da nova ordem de sair, trabalhar e voltar pra casa.
E em 1992 todos reverenciaram o teatro baiano. A
Academia de Letras realizou um seminário sobre o ‘renascimento
artístico’ da cidade, inclusive do teatro, cotejando o momento com a Era
Martim Gonçalves. Mas era mais importante. A imprensa comentava,
através de suas múltiplas bocas, “o novo vigor do teatro baiano”
(Baptista, 1992) em “dias tão profícuos quanto a população de cangurus
na Austrália” (Brito, 1992), e “a festa num fim de semana, com nada
menos do que 12 espetáculos em cartaz. Cinco com presença obrigatória,
pela excelência” (Rosa, 1993). Mas, para além dos louros, os artistas
tinham público, os artistas tinham trabalho. Era a profissionalização.
Em 1993, o Pelourinho foi retomado da degradação,
promessa de campanha. Também em 93, reinaugurou o TCA que, em 1991,
estava degradado. Foi esperado por uma multidão na entrada do teatro e
recebeu convidados de todo o país.
Sem o benefício da reeleição, ACM concorreu ao
Senado e Paulo Souto tornou-se governador, criou a Secretaria de Cultura
e Turismo, sob o comando de Paulo Gaudenzi. Os projetos se
multiplicaram. E os resultados também. Humano de tímpanos pacientes e
namorador incorrigível, Gaudenzi amigou-se aos artistas e inaugurou ou
reinaugurou dezenas de espaços para a profissionalização. E o teatro se
tornou um trabalho como os outros.
De 1991 a 1996, a Secretaria investiu nos filmes
Tieta do Agreste e Canudos, argumentando que os filmes divulgariam a
Bahia e atrairiam turistas. Os cineastas gritaram. Gaudenzi premiou a
classe com um mecanismo de renúncia estendida que funciona até hoje. No
dia nacional da cultura, em 1997, Gaudenzi lançou a Lei do FazCultura,
ao lado do ministro Weffort, e anunciou a criação dos selos Letras da
Bahia de literatura e Sons da Bahia de música.
Dos 38 álbuns mais vendidos pela Polygram no
planeta, em 1997, todos com vendas acima de um milhão de cópias, quatro
eram brasileiros e três eram os baianos É o Tchan, Banda Eva e Netinho.
Produções locais lotaram o TCA: “É curioso e importante dizer que, desses grandes espetáculos, alguns baianos, A Bofetada, Noviças Rebeldes, Três em Um e Os Cafajestes, conseguiram estar lado a lado, em frequência, com os melhores do país” (Queiroz, 1997). Em 1997, o PIB da cultura na Bahia era de 4,4%, maior que os 3% do turismo, envolvendo quase 85 mil baianos em atividades culturais.
Em 1999, Humberto Braga, da Funarte, detectava que “o Brasil está mudando o seu desenho de produção artística. Hoje eu sinto que não existem mais os polos principais. Há, sim, muitos polos teatrais importantes em vários estados, e o da Bahia é um dos mais fortes” (Braga, 1999).
Produções locais lotaram o TCA: “É curioso e importante dizer que, desses grandes espetáculos, alguns baianos, A Bofetada, Noviças Rebeldes, Três em Um e Os Cafajestes, conseguiram estar lado a lado, em frequência, com os melhores do país” (Queiroz, 1997). Em 1997, o PIB da cultura na Bahia era de 4,4%, maior que os 3% do turismo, envolvendo quase 85 mil baianos em atividades culturais.
Em 1999, Humberto Braga, da Funarte, detectava que “o Brasil está mudando o seu desenho de produção artística. Hoje eu sinto que não existem mais os polos principais. Há, sim, muitos polos teatrais importantes em vários estados, e o da Bahia é um dos mais fortes” (Braga, 1999).
Era. No século 21, a Bahia poderia ser um dos polos
culturais do Brasil. Mas, em 2002, quando os artistas acharam que tudo
estava resolvido, a Bahia perdeu a parceria federal da cultura, apesar
do ministério Gil. A migração voltou a levar os jovens talentos para o
Sudeste e, entre 2007 e 2014, a profissionalização escorreu pelo ralo.
Evaporou como se nunca tivesse acontecido, é verdade. Mas a
infraestrutura continua de pé. E nós estamos vivos.
* Aninha Franco a autora deste sumário de fim de século na Cidade da Baía, 1990 a 2000, é dramaturga e poeta
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