Os inimigos de Getúlio continuam entre nós
"Ao ódio respondo com o perdão; E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória", da carta-testamento
Ao fim de cinco anos de pesquisas, três volumes e 1.654 páginas,
nem assim o jornalista Lira Neto, autor daquela que passa a ser a
biografia definitiva de Getúlio Vargas ousou optar por uma das versões
maniqueístas acerca de uma figura pespegada de polêmicas e mergulhada em
contradições. Ante personagem tão multifacetado, o biógrafo eximiu-se
de um juízo final.
“Para muitos, ele foi o grande
responsável pela modernização do Brasil, ao pôr em prática um modelo
nacional-desenvolvimentista capaz de direcionar, em pouco mais de duas
décadas, um país agrário para o rumo efetivo da industrialização”,
escreve Lira Neto. “Sob essa mesma perspectiva, a vasta legislação
trabalhista instituiu o necessário equilíbrio na relação entre patrões e
empregados, superando os resquícios da escravocracia mais arcaica.”
Para o lado de lá da fronteira político-ideológica, o
chamado populismo varguista seria “a expressão mais pronta e acabada do
uso das massas como instrumento de dominação política”. Pela voz dos
desafetos, a incorporação dos trabalhadores e das classes médias ao
cenário nacional “teria sido apenas uma forma de legitimar o líder
autoritário e personalista, dando sustentação a um projeto de poder
autocrático e incompatível com a verdadeira democracia”.
Não há controvérsia que resista, no
debate sempre incendiário, a duas certezas que o distanciamento
histórico impõe, a respeito de Getúlio. A primeira é que, ao desfechar
contra o peito o tiro que pôs fim à própria vida e, por extensão, ao
cerco brutal dos inimigos civis e fardados que exigiam sua renúncia, o
ex-ditador e então presidente eleito pelo voto popular reiterou a
dignidade serena de um político que, nas reviravoltas da conjuntura,
acreditou no diálogo e na conciliação, mesmo quando o ambiente estava
contaminado pelo ódio dos que ele derrotara.
A outra verdade, inapelável, mostra que
os inimigos que cobraram de Getúlio a remissão pelo sangue continuam por
aí, eles e os seus descendentes, como zumbis insepultos, com a mesma
retórica arcaica, o mesmo rancor retrógrado, o mesmo desprezo aos pobres
e deserdados. Nem parece que 60 anos se passaram desde o sacrifício de
honra, pois os inimigos de Vargas e do que ele representou continuam
ativos, truculentos e delirantes, desafiando hoje, num repertório de
coincidências assustadoras, aqueles que se colocam ao lado do povo e da
justiça social.
A feliz e marcante diferença é que as
Forças Armadas, reintegradas ao convívio democrático, parecem ter
desistido de qualquer protagonismo político, relegando ao baú infame da
história figuras caricatas como o brigadeiro Eduardo Gomes, golpista
empedernido, o marechal Eurico Dutra, duplamente traidor de Vargas, o
general Juarez Távora, que viria a ser humilhado por Juscelino
Kubitschek em 1955, e outros menos votados.
A escalada do rancor contra um presidente
legítimo, ancorada na retórica tonitruante do jornalista Carlos Lacerda
a açular a sofreguidão conspirativa dos quartéis, ecoa hoje, com
palavras incrivelmente iguais e verdades duvidosas, nos editoriais dos
jornalões e nos noticiários da tevê, no palavrório dos taxistas e em
comentários das redes sociais. Seguindo as pegadas de Lira Neto, eis
aqui três exemplos de semelhanças gritantes:
O perigo comunista e a foto com Prestes:
O acirramento ideológico insuflado pela Guerra Fria serviu de pretexto
para que o Partido Comunista, robustecido pelo voto democrático em 1945
(elegeu, por exemplo, 18 vereadores no Distrito Federal, o dobro da UDN
do Brigadeiro e do PTB de Vargas), fosse colocado na ilegalidade pelo
patético marechal Dutra, eleito, aliás, com o apoio velado do getulismo.
Muitos dos comunistas foram se abrigar sob o guarda-chuva do PTB, o que
foi suficiente para que a imprensa conservadora passasse a ver, à
sombra do getulismo, o espectro do bolchevismo. Uma foto, devidamente
manipulada pelos que buscavam ressaltar o conluio, levou um aguaceiro ao
moinho dos reacionários: Getúlio e Luís Carlos Prestes, líder do PC,
lado a lado num palanque no Anhangabaú, em São Paulo, em novembro de
1947. Getúlio discursava e a foto do jornal A Noite, do finório
Chatô, sugeria que o próprio Prestes segurava o microfone para o
ex-ditador. O corte na foto fora proposital. “A associação dos dois
inimigos da democracia é não somente uma afronta como uma intolerável
ameaça ao Brasil”, reverberou o editorial do Diário Carioca.
Imprimiu-se a lenda. Na verdade, Getúlio e Prestes nem sequer se
cumprimentaram num evento de apoio ao candidato anti-Adhemar de Barros. O
ex-presidente fez seu discurso, desceu pelos fundos do tablado e se
retirou. Não ouviu o discurso de Prestes – e estava longe quando
tumultos explodiram na praça. Os comunistas, àquela altura, tinham uma
pauta política distante do trabalhismo. Uma de suas vítimas, nos anos
50, seria o ministro do Trabalho, João Goulart. Acusavam Jango de, ao
melhorar a vida dos trabalhadores, amaciar a inevitável luta de classes.
O “Pai dos pobres” e a ira dos ricos: Em
fevereiro de 1954, a facção radicalizada do Exército ensaia romper com a
legalidade democrática no explosivo “Manifesto dos coronéis”. As 86
assinaturas prenunciavam o elenco que iria dez anos depois impor ao País
uma ditadura de 21 sombrios anos. O pretexto era o “perigoso ambiente
de intranquilidade”. Resposta aos convites à ruptura sistematicamente
feitos por jornais como o Correio da Manhã, do histérico José Eduardo de Macedo Soares, O Globo,
de Roberto Marinho, o imperioso império de comunicação do chantagista
Assis Chateaubriand (já com a novidade ainda que retrita da televisão) e
pela Tribuna de Imprensa, de Carlos Lacerda, ex-comunista e
agora panfletista da extrema-direita. Na verdade, o estardalhaço todo
era alimentado por decisões que reafirmavam o compromisso de Vargas com
uma economia não tutelada pelos Estados Unidos: a criação da Petrobras e
da Eletrobras e a restrição à remessa de lucros. O alvo preferencial
dos militares e de seus alcoviteiros civis era o ministro do Trabalho,
João Goulart, que se movimentava para conseguir um aumento de 100% para o
salário mínimo. O mínimo que a direita dizia à época é que melhorar a
vida dos trabalhadores podia quebrar o empresariado e o País – e que,
portanto, medidas assistencialistas acabam se voltando contra aqueles
que o governo pretendia assistir. Soa familiar? A crise cobrou a cabeça
do ministro Goulart, mas o contorcionista Vargas, ao se dirigir aos
“trabalhadores do Brasil” no tradicional pronunciamento de 1º de maio,
surpreendeu-os com a boa-nova do aumento propugnado por Goulart. O
salário mínimo passou de 1,2 mil cruzeiros para 2,4 mil cruzeiros (1.268
reais, em valores de hoje). Os insubmissos não iam engolir a afronta. A
elite branca, enfatiotada e encapelada, antecipou-se. Quando Vargas
ousou aparecer na tribuna do Hipódromo da Gávea para o Grande Prêmio
Brasil, no dia 1º de agosto, tributou a ele uma vaia mais do que
orquestrada.
O “mar de lama” e sua gota d’água: Há
aspectos nebulosos (e farsescos) no episódio que acabou por acuar
Getúlio de vez : o atentado da Rua Toneleros, na madrugada de 5 de
agosto. A versão do inquérito oficial e das investigações paralelas da
“República do Galeão” – a Aeronáutica se insubordinou, ávida por vingar
a morte do major Vaz num suposto atentado a Lacerda – aponta para uma
operação de aloprados próximos da Presidência, mas à revelia do
presidente. Lacerda, que saiu de vítima, com um pé enfaixado (os laudos
médicos sumiram e o jornalista não deixou a polícia periciar o revólver
que usou no tiroteio), acusou diretamente Getúlio. “As fontes do crime
estão no Catete”, escreveu na Tribuna da Imprensa. “O governo de
Getúlio é, pois, além de imoral, ilegal.” Carlos Lacerda sempre botou
sua verve de tribuno a serviço de duas causas: a derrubada de Getúlio e
seu próprio narcisismo. No início da campanha presidencial de 1950,
Lacerda foi claro: “O senhor Getúlio Vargas senador não deve ser
candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não
deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo
de governar”. O golpismo estava no DNA do “demolidor de presidentes”
(definição da historiadora Marina Gusmão de Mendonça). A ironia é que a
tal “revolução” que Lacerda apregoava, adiada pelo gesto heroico de
Vargas em 1954, abortada de novo na reação à posse do vice Goulart, em
1961, e finalmente concretizada na “redentora” de 1964, acabaria por
cortar as asas do Corvo agourento.
*Reportagem publicada originalmente na edição 815 de CartaCapital, com o título "Os zumbis de 1954"
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