OS INJUSTIÇADOS – A CENSURA À MÚSICA BREGA NA DITADURA MILITAR
Censura
à música brega na ditadura militar: quando falamos em censura na música
brasileira durante a ditadura, os primeiros nomes que nos vêm à cabeça são os
de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. No entanto, um
outro grupo, igualmente importante para a cultura nacional, também fora
extremamente perseguido, e não apenas pelo governo, mas também pela própria
sociedade: os cantores de música brega. Por serem considerados como cantores do
povão, de valor desprezado por muitos críticos e historiadores musicais, pouco
se fala a respeito da censura política e social que esses artistas, verdadeiros
cronistas do cotidiano amoroso, sofreram durante o regime.
Um apartheid musical
Paulo
César de Araújo, autor da biografia censurada de Roberto Carlos, também é o
autor da obra Eu Não Sou Cachorro Não, que fala justamente sobre a
censura à música brega na ditadura militar, a perseguição que os cantores de
música brega sofriam durante o regime. Segundo o historiador, “A memória
construída sobre o período só valorizou a resistência dos cantores da MPB. No
entanto, cantores como Odair José, Nelson Ned e Wando também foram proibidos, e
isso se deveu não apenas a uma censura política, mas também a uma censura
moral, visto que não se podia falar de cama, de pílula, de sexo”. E foi
principalmente essa a censura que os cantores bregas sofreram.
As
músicas do radinho da empregada, como eram conhecidas as canções românticas,
provocavam verdadeiras revoluções comportamentais via FM. Em plena década de
1970, quando questões como o divórcio ainda eram mal vistas, quem teria coragem
para falar sobre o amor de um homem por uma prostituta? Quem falaria sobre a
virgindade ou sobre o adultério? Eram os cantores populares que tocavam nesses
tabus e, como conta Araújo, havia um apartheid na música brasileira: a canções
consideradas cafonas eram para o povão, enquanto a MPB era consumida pela
classe média.
Censura à música brega na ditadura
militar: os cronistas censurados
A
maior parte da produção dos cantores populares dizia respeito ao amor e à
sexualidade. Eram, e ainda são, cronistas do amor, escrevendo, em forma de
música, sobre os dilemas, os desejos, as aventuras e desventuras do que
acontece entre quatro paredes e, principalmente, dentro do coração. No entanto,
apesar de falarem sobre assuntos que faziam parte da vida de qualquer pessoa, a
censura à música brega na ditadura militar foi barra pesada, principalmente
para Odair José.
“Odair
José foi um dos cantores mais censurados da música brasileira, e não apenas da
música brega”. Como conta Araújo, o cantor gostava de tocar em temas tabus,
porque sabia que a sociedade precisava discutir esses assuntos, que não
adiantava fechar os olhos para questões que eram importantes.
Um
dos episódios mais emblemáticos de censura ao cantor é o da música Uma
Vida Só (Pare de Tomar a Pílula). Na época, então no ano de 1973, o governo
brasileiro desenvolvia uma campanha de natalidade, que estimulava o uso da
pílula entre os mais pobres, pois -quanta ignorância!- o Estado acreditava que
o nascimento de filhos de pessoas pobres era a causa da pobreza no país. A
pílula era distribuída principalmente nas periferias da região Nordeste, e a
iniciativa havia sido financiada pelo Banco Mundial. “Nesse contexto, auge da
ditadura Médici, quando havia cartazes espalhados dizendo ‘Tome a Pílula Com
Muito Amor’, surge uma música no rádio, de sucesso estrondoso, dizendo ‘Pare de
Tomar a Pilula’. A canção de Odair José foi considerada como um ato de
desobediência civil e foi proibida de ser executada nas rádios, mesmo depois de
já ter sido lançada”, conta Araújo.
E
não foi só o governo que se opôs à canção. Apesar de ser contra o uso da
pílula, a Igreja achava que a música ajudava a divulgar o uso do
anticoncepcional, e também a censurou. Grupos conservadores de classe média
também se opuseram, pois consideravam que esse era um assunto que não deveria
ser tratado de maneira tão explícita.
“Um
outro caso emblemático, também com o Odair José, é o da canção Em
Qualquer Lugar que dizia ‘Em qualquer lugar a gente se ama, dentro do
meu carro, embaixo do chuveiro, no jardim’. Essa canção, mesmo tendo sido
gravada, não conseguiu ser inserida no disco. Apesar de ser uma letra que não
tem nada de mais, para a época aquilo era uma afronta, e a censura, inclusive,
escreveu: ‘A música relata um casal fazendo sexo como dois animais’. Embora
Odair tenha recorrido e modificado a letra, a canção foi inteiramente
proibida”.
Mas
os bregas também falavam de política e, obviamente, também tinham que driblar a
censura para isso. Luiz Ayrão, em 1977, lançou a canção O divórcio,
que, de maneira muito inteligente, usava a metáfora da separação amorosa para
falar sobre a insatisfação com o regime imposto em 1964: “Treze anos eu te
aturo/ Eu não aguento mais/ Não há Cristo que suporte/ Eu não suporto mais”.
Senhora dos absurdos
A
ditadura foi capaz de censuras que não tinham o menor fundamento. Waldick
Soriano, cantor de boleros românticos, teve a música Tortura de amor censurada
apenas por incluir a palavra “Tortura”, sendo que a letra não tinha nenhum
conteúdo político, mas apenas amoroso: “Hoje que a noite está calma/ E que
minh’alma esperava por ti/Apareceste afinal/Torturando este ser que te adora”.
Eram tempos de rigidez, mas não se pode cometer a injustiça de imaginar que a
música brega não foi atingida. Um dos gêneros musicais mais importantes do país
foi censurado sim, e isso dura até os dias de hoje. Afinal, a ditadura pode ter
passado, mas grande parte da sociedade ainda torce o nariz para as letras
populares, para a arte de cantores cujo grande pecado é falar sem pudores sobre
amor. Uma conhecida composição de Genival Lacerda, Severina Xique Xique, recebeu reclamações de “famílias cearenses” por causa do duplo sentido da palavra “boutique”.
Wando, que causou polêmica com a música Moça, que falava sobre a virgindade
Brega político: Luiz Ayrão é o autor da canção O divórcio, que criticava o regime militar
Comentários
Postar um comentário