Mulheres são sempre vítimas?
Texto de Daniela Andrade.
Quanto
a esses discursos teóricos de que as mulheres serão sempre vítimas da
sociedade, jamais agentes de opressão, tenho a dizer que:
Minha
mãe me bateu a vida inteira para eu virar homem, ela me expulsou de
casa por eu ser mulher trans* — ela não tinha qualquer culpa disso?
Mulheres
me arrancaram de dentro de um banheiro dizendo que eu não tinha direito
de usá-lo pois eu não era mulher, quem teve culpa disso, eu?
Professoras durante a minha vida disseram que jamais iriam me tratar por Daniela na escola, inocentes, de certo!
Mulheres
também me impediram de usar banheiros femininos durante 11 anos na
escola, logo, desenvolvi incontinência urinária, quem teve culpa já que
não foram elas?
Foram
também mulheres que me xingaram de toda ordem de nomes pejorativos
durante muito tempo pois eu me dizia mulher, Elas eram todas inocentes?
Foram
mulheres com a profissão de psicólogas de Recursos Humanos que
decidiram que eu não tinha o perfil para a vaga, após descobrirem que eu
era uma mulher trans*, curioso, não?!
E
no judiciário não há apenas homens, vi sentenças de juízas mulheres que
escreveram toda sorte de transfobia e cissexismo para negar direito à
mulheres e homens trans* terem a cidadania plena reconhecida pelo
estado.
Essa
história da mulher sempre vítima e jamais motor de qualquer opressão
trata as mulheres todas como se fossem seres sem vontade, sem
legitimidade, que nada sabem sobre a sociedade e as violências, sempre
fracas demais, sem agência. Portanto, devemos nós que sofremos
transfobia considerar que a transfobia é uma opressão imaterial, que não
precisa de agentes para acontecer e se tiver algum agente, sempre deve
ser apenas e tão somente o homem cisgênero.
Todas
inocentes, mulheres jamais podem causar qualquer mal a ninguém. Que
mundo fantástico seria um apenas com mulheres, nenhuma violência por
certo existiria! Mulheres não são capazes de causarem violência racista,
homofóbica, classista, transfóbica, gordofóbica, capacitista. É tudo
culpa dos homens.
Na
hora de sermos agredidas com transfobia e cissexismo, naquele momento
em que estamos tendo o respeito à nossa identidade de mulher negado, em
que estamos sofrendo violências que nos deixam muitas vezes marcas
profundas por muito tempo, não está importando qual a gênese daquela
violência, se ela se deu início na Idade da Pedra Lascada, da Pedra
Polida ou na Idade Média. O que me importa nesse momento é que uma
pessoa, que por um acaso pode ser uma mulher cisgênera, está me
desrespeitando e, inclusive, muitas vezes sabendo que está
desrespeitando, discriminando pelo sabor de discriminar.
Eu
sou feminista mas não sofro de cegueira intelectual. Sou a favor das
mulheres mas jamais vou passar a mão na cabeça de mulheres que
discriminam pessoas pertencentes à populações historicamente
discriminadas e marginalizadas. Todas as vezes que eu me calo, a
discriminação não deixa de existir, a violência não deixa de acontecer.
Eu
não tenho qualquer problema com nenhum tipo de feminismo realmente
libertador e includente, mas tenho todos os problemas do mundo com
feminismos transfóbicos — pois eles fazem o que a sociedade inteirinha
está fazendo: retirando o meu direito de ser pessoa, pois se eu quero
ser tratada como mulher, se eu me reivindico como mulher, isso significa
que a minha identidade de gênero faz parte da minha humanidade; e ter
minha humanidade respeitada é ter a minha dignidade assegurada.
Não vou respeitar feminismos que me negam o respeito à minha individualidade, à minha dignidade, à minha humanidade.
Não
estou isentando aqui as mulheres trans* e demais pessoas trans* dos
erros que cometem, jamais corroborarei discursos que dizem que devemos
combater mulheres, que devemos atacar mulheres, que devemos odiar
mulheres. Mas farei tudo isso contra discursos que pregam ódio contra as
mulheres trans*, que inflam e asseguram o combustível da transmisoginia
dentro da sociedade.
Minha
luta é contra a transfobia também, pois eu sei o que é a transfobia na
minha carne, no meu cotidiano: parta de quem partir, venha de onde vier —
ainda que camuflada dentro de supostos movimentos libertadores e
emancipadores de pessoas oprimidas, movimentos esses que se acham muito
corretos ao não pensarem duas vezes para colocar em curso a opressão e
marginalização de outras populações oprimidas.
A
pessoa que errou precisa ser advertida do seu erro, precisa se
conscientizar que quem sofre a transfobia é que tem mais legitimidade e
autoridade para anunciar que a transfobia está ocorrendo, e é preciso o
respeito à essa pessoa. Transfobia não é violência menor, transfobia
retira direitos muito básicos nossos todos os dias, como o direito a ter
um nome respeitado. Transfobia mata pessoas, as empurra para o
desemprego e para a prostituição, transforma pessoas em cidadãs de
segunda classe.
E
se a pessoa que errou é advertida e prefere continuar errando — não,
não vou apoiar, não há qualquer chance de ter sororidade com quem
escolheu a sororidade seletiva, com quem se acha no direito de decidir
quem pode se dizer mulher ou não. Com quem tem ou não o selo cisgênero
de qualidade para ter o direito de se dizer mulher.
Dizer
que mulheres trans* não são mulheres não é divergência teórica, isso é
violento, isso é cissexista, isso é discurso de ódio contra a dignidade
de seres humanos.
Ninguém
precisa ter lido livros de teóricos e teóricas para descobrir que o
respeito à individualidade, à intimidade, à privacidade e a dignidade de
cada ser humano são pressupostos básicos para que uma sociedade
funcione de forma exitosa. Pessoas analfabetas conseguem entender o
significado da palavra respeito.
E
respeito não é uma escolha, não é você que decide como vai nos tratar
para que nos sintamos respeitadas — se a mulher trans* não se sente
respeitada sendo tratada como homem, como macho, como XY, RESPEITE! Se
você deseja o mesmo respeito para você, coloque em curso o respeito às
outras mulheres.
Autora
Daniela
Andrade é uma mulher transexual que luta ansiosamente por um presente e
um futuro mais digno às todas as pessoas que ousaram identificar-se tal
e qual o são, independente daquilo que a sociedade sacramentou como
certo e errado. Não acredito no certo e o errado, há muito mais cores
entre o cinza e o branco do que pode supor toda a limitação
hétero-cis-normatizante que a sociedade engendrou. Escreve em seu blog pessoal: ” Alegria Falhada. Administra a página: Transexualismo da Depressão.
Fonte: Blogueiras Negras
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