Cidadão Boilesen
Artigo - Cidadão Boilesen e o financiamento da tortura no Brasil
Wagner Braga Batista
O filme “Cidadão Boilesen” (Direção de Chaim Litewski, Brasil,
2009, 92 minutos) descreve a trajetória ascendente de Henning Albert
Boilesen, um próspero empresário, nascido na Dinamarca, que se
naturalizou brasileiro.
Sua ascensão é marcada por ações contraditórias. Personagem
destacada em eventos sociais, irá se celebrizar na década de 1960 pela
sua articulação com aparelhos repressivos do regime militar, no Estado
de São Paulo, especialmente a Operação Bandeirante-OBAN, criada em julho
de 1969, e o Destacamento de Operação e Informações- Centro de
Operações de Defesa Interna- DOI/ CODI, instalado em 27 de setembro de
1969.
O
filme retoma um tema ainda nebuloso, a natureza do golpe militar, bem
como a íntima relação entre empresários e artífices do regime
ditatorial. Esta relação antecede a derrubada de Jango, irá
amadurecendo. Será refinada e consolidada por meio de benefícios mútuos,
obtidos em ausência das liberdades democráticas. Muitos dos que se
proclamam liberais, foram coveiros da democracia em nosso país.
Expõe
as entranhas dos órgãos de repressão e os artifícios utilizados para
encobrir seqüestros, torturas e assassinatos de presos políticos.
Expedientes, que prevalecem até os dias de hoje, são desmontados pelo
confronto de depoimentos de participes diretos de organismos de
repressão.
Este
documentário torna-se bastante elucidativo. Quando se debate as
implicações e o alcance do Plano Nacional de Direitos Humanos, ajuda a
esclarecer contenciosos latentes e desenha campos onde se alojam
posições em conflito.
Da
mesma forma que não se pode atribuir a todos os empresários estas
práticas, não se pode responsabilizar todos militares pela participação
em práticas repressivas, que se tornaram política de Estado e pilares da
Lei de Segurança Nacional.
Estes
organismos , criados com assessoria de agencia de informação
norteamericana, mantiveram-se em sintonia com a Lei de Segurança
Nacional. Tinham como objetivo unificar os aparatos policiais e as
forças armadas na ação contra as organizações políticas que enfrentavam o
recrudescimento do regime militar. Valiam-se
da falta de liberdades civis para exercer suas atividades execráveis e
se fechar num tenebroso sigilo, que se manteve até a escalada das lutas
democráticas e a exaustão das medidas excepcionais, impostas pela
ditadura militar.
Boilesen
desempenhará importante papel arrecadando recursos financeiros e
materiais, junto ao empresariado paulista, para a montagem destes órgãos
de repressão política. Muitas vezes fazendo-se acompanhar de figuras
proeminentes da ditadura, a exemplo do, então, Ministro da Fazenda,
Delfim Neto (1967- 1974), que ofereciam maior prestígio a sua pessoa e
maior credibilidade as suas torpes demandas.
Contudo, não se limitará a angariar apoio logístico e financeiro do empresariado paulista, também participará ativamente de sessões
de interrogatórios e de torturas, contribuindo com estas práticas
hediondas com um instrumento denominado pianola Boilesen. Um teclado
associado a circuitos elétricos que permitia o controle da intensidade e
da duração de eletrochoques aplicados em presos políticos.
O
filme resulta de pesquisa desenvolvida durante quinze anos, por Chaim
Litewski e Pedro Asbeg, em dois países, Dinamarca e Brasil. Recupera a
trajetória de vida de Boilesen desde sua infância. Desenvolve-se por
meio de depoimentos, da apresentação de imagens documentais e de
reconstituições de alguns fatos narrados. Revela também o
comprometimento da quase totalidade do empresário paulista com o
financiamento desta prática hedionda. São mencionadas duas honrosas
exceções, José Mindlin, falecido recentemente, e Antonio Ermírio de
Moraes.
Destaca
a atuação do, então, presidente do Bradesco, Amador Aguiar. Este
banqueiro cumpriu o papel de Boilesen em escala nacional. Ou seja, foi o
arrecadador de fundos para a tortura com empresários de outros estados e
regiões do país.
O
filme menciona grandes grupos econômicos, a exemplo do Grupo Ultra e
Camargo Correia, corporações transnacionais que retribuíam favores do
regime militar a peso de ouro. As empresas automobilísticas General
Motors, Ford, Volkswagen que contribuíam com altas somas para a
tenebrosa caixinha. Em paralelo, constituíam sistemas de informação, privados e internos em suas fábricas, assessorados por experts a serviço da ditadura. Articulados com os aparatos de repressão, serviam para identificar e denunciar ativistas políticos.
Neste contexto, surgem outros tipos sórdidos. Os oficiosos especialistas em informações , os falsos arrependidos. Converteram-se
em analistas de informações e contribuíram ativamente para checar
depoimentos arrancados sob tortura, identificar organizações
clandestinas, mapear suas áreas de intervenção e rastrear seus
militantes. O mais conhecido deles, José Anselmo dos Santos, o Cabo
Anselmo, que à margem da vida pública irá se tornar consultor de
empresários e agências de repressão no cone sul. Destacar-se-á neste
execrável trabalho de atraiçoar. Hoje procura ser contemplado com a anistia, que não concedeu a seus antigos companheiros de luta.
O
documentário também sugere o apoio material e o suporte ideológico
emprestado por grandes jornais às práticas repressivas, menciona
especialmente a Folha de São Paulo e seu proprietário Octávio Frias de
Oliveira, que cedeu automóveis
para serem utilizados por agentes da repressão em ações de busca de
captura de militantes de organizações políticas. Por um lapso, deixa de
mencionar a Rede Globo, o império midiático, que se forma a partir da
década de 1960. Será o maior beneficiário do regime militar neste campo e
lhe prestará incondicional apoio.
Boilesen
será justiçado no dia 15 de abril de 1971 por um grupo de militantes de
duas organizações armadas o Movimento Revolucionário Tiradentes- MRT e a
Ação Libertadora Nacional- ALN, em plena luz do dia, numa movimentada
alameda de São Paulo.
Reportando-se
ao fato, o filme apresenta um dramático depoimento de Carlos Eugenio
Sarmento da Paz. Comandante da ação, único sobrevivente do grupo que
participou diretamente do justiçamento, convive há vários anos com o
peso desta decisão.
Num
outro expressivo depoimento, Helio Bicudo, o promotor que enfrentou o
Esquadrão da Morte, em São Paulo- de onde saíram vários integrantes da
OBAN- recusa-se a admitir que o assassinato de Boilesen tenha sido uma
ação voluntarista. Numa corajosa postura, qualifica- a como uma ação
política de eliminação de um criminoso que contribuía para disseminar a
tortura e assassinatos no país.
Um dia após a morte de Boilesen, são seqüestrados Joaquim
Alencar de Seixas e Dimas Antonio Casemiro, participantes do
justiçamento. A morte de Joaquim Seixas, ainda vivo, é anunciada ao seu
filho, também preso, Ivan Seixas, com dezesseis anos de idade. Estampada
na manchete de jornal, quando sabidamente ainda estava sendo torturado
na OBAN. Dimas Casemiro foi assassinado de forma semelhante. Apesar de
ter sua prisão registrada e seu corpo entregue ao Instituto Médico
Legal, dia 19 de abril de 1971, até hoje está arrolado entre os
desaparecidos políticos. ( Ver Miranda, Nilmário e Tiburcio, Carlos, Dos filhos deste solo- Mortos e desaparecidos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado, São Paulo, Boitempo Editorial, 1999, p 227 / 231 )
Anos depois, fomos condenados ao silencio, quando cinicamente, um Ministro da Justiça, Armando Falcão (1974-1979) , instituiu o lapidar bordão: nada a declarar.
Consagrou a razão dos não fomos nós, nada sabemos e sequer nos
conhecemos. Ofereceu as máscaras e vetustos trajes, que ainda hoje
vestem renovados empresários, neoliberais- vejam como este termo é
apropriado- e responsáveis diretos por estes atos hediondos.
A
partir daí, somos levados a crer que nos tornamos responsáveis por
crimes que não praticamos. Tornamo-nos cúmplices de um silencio que
ainda soa dentro de nós.
Este
documentário é bastante pertinente num contexto em que verdades e
mentiras são negociadas ao sabor das circunstancias políticas. Em que se
fala em revanchismo, como um álibi que inibe investigações, oculta
responsabilidades e enobrece autores de atrocidades. Pode ser
complementado com a visão de outro documentário, igualmente revelador: “Operação Condor”(Direção
de Roberto Mader, Brasil, 2007, 103 min.). O filme relata a articulação
das agências de repressão no Cone Sul durante a década de 1970.
Remete-nos
à atualidade, à internacionalização da tortura. Faz-nos pensar nas
prisões de Guantánamo , Abu Ghraib , nos cárceres clandestinos da CIA , nos métodos predominantes de interrogatórios no Iraque, Afeganistão, e em tantos outros países.
Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG
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