Opinião El País: Artigo publicado há algum tempo mas vale a pena ler.
Impeachment: ritos, sussurros e um lugar na história
Ser mecanismo constitucionalmente previsto não garante a legitimidade de todo e qualquer caso específico
É provável que, em meados de maio, Michel Temer assuma a Presidência da República no lugar de Dilma Rousseff, com a abertura do processo de impeachment no Senado. Essa é mais uma batalha praticamente perdida pelo Governo, que terá como última trincheira – antes dos prováveis recursos no Supremo Tribunal Federal (STF) – a votação final do processo naquela Casa, quando tentará impedir a oposição de obter o apoio de dois terços (54 senadores) pela condenação e afastamento definitivo da presidente. No atual estado de coisas, entretanto, o Governo só se salva com o surgimento de fatos novos, que alterem as expectativas dos atores políticos e econômicos, além do ânimo da sociedade. Lufadas bombásticas da Lava Jato (ou outros esquemas) sobre Temer, a cassação da chapa completa pelo TSE, uma interferência incisiva do STF sobre o processo, ou a explosão de uma guerra interna no PMDB, levando a um racha que comprometa o roteiro do impeachment, são algumas das possibilidades sobre as quais podemos apenas especular – e em relação às quais o Governo pode pouco mais do que torcer, já que não se coloca como protagonista em nenhuma.
Muitos já disseram que o impeachment é processo político, e não jurídico. Para além dos efeitos retóricos de tal afirmação, ela se confirma quando se observam a abrangência e subjetividade das justificativas elencadas no artigo 85 da Constituição para embasar o afastamento de um presidente da República. Olhado através de lentes interessadas no processo, qualquer mandatário pode ser enquadrado nas genéricas razões ali apresentadas, configurando-se como autor de crime de responsabilidade no exercício de suas funções. Na prática, desenvolve-se um mecanismo inverso – se não cronologicamente, ao menos cognitivamente. Uma Presidência com baixa popularidade, fragilizada por seus próprios erros e pela combinação de crises política e econômica, representa uma oportunidade para outras forças políticas – da oposição e da própria base de apoio – chegarem ao Governo sem ganhar as eleições. Esses atores interessados no afastamento buscam apoio político para o impeachment, e no processo (com o suporte de advogados que lecionam, autointitulados juristas) pinçam as justificativas jurídicas mais plausíveis e menos contestáveis em eventuais recursos a posteriori. A discussão sobre a caracterização de crime de responsabilidade da presidente está deslocada, portanto. O foco deve ser outro.
Popularidade baixa e problemas na gestão não são motivos para o afastamento do chefe de Governo
Por pior que seja a gestão e por maior que seja a dificuldade no relacionamento entre executivo e legislativo, o que caracteriza esse sistema, em oposição ao parlamentarismo, é que os mandatos são independentes e com origem distinta; o mandato do presidente não depende de aprovação do legislativo para cumprir o tempo previsto. Se parte das forças governistas está insatisfeita, tem todo o direito de passar para a oposição. Dilma poderia fazer um governo de minoria, tendo que lidar até 2018 com um Congresso dominado por forças hostis à sua agenda – como acontece com o presidente dos EUA em muitas ocasiões. Seria provavelmente uma gestão muito ruim, mas as regras do jogo democrático estariam mantidas. Cada sistema tem a dor e a delícia de ser o que é: a separação Executivo-Legislativo traz problemas, mas é também a beleza de um regime que dificulta a concentração de poderes em um mesmo grupo político. O que não é admissível é encurtar o mandato do presidente ou acochambrar um parlamentarismo de ocasião, branco ou da cor que seja, apenas para justificar a poda dos poderes presidenciais. Isso não é próprio de democracias.
Deixando de lado as próprias figuras presidenciais, as diferenças em relação ao impeachment de Collor são muitas e evidentes; destaco aqui apenas duas. À época, o principal partido de oposição foi um ator importante e bastante atuante para o andamento das investigações e do processo de impeachment no Congresso, e para a mobilização das ruas. No entanto, o PT não buscava com isso um atalho para o poder: recusou integrar o Governo Itamar Franco, de olho na consagração popular que viria (mas não veio) em 1994. Agora, o PSDB já ensaia a dança do acasalamento com Temer, falando em nomes (como José Serra) para o eventual novo ministério. Por outro lado, o então vice-presidente Itamar Franco não foi o principal articulador do impeachment, visando tomar o lugar de Collor no Planalto. Já Michel Temer mostrou a que veio desde a lamuriosa carta sussurrada em dezembro. De fazer inveja aos piores e mais piegas momentos de Florentino Ariza (personagem de García Márquez), a missiva foi a senha para o início da ofensiva do PMDB. Partido federalizado, com autonomias (as seções estaduais) que se mantêm interdependentes apenas para a atuação concentrada no Congresso, diferentes setores do PMDB passaram a ver como concreta a chance de chegar ao comando do Governo federal por um atalho - sem passar pelas urnas e pela amarração entre as seções regionais, necessária para o lançamento de um candidato presidencial competitivo, o que quebraria a autonomia estadual e desagradaria a alguns caciques em prol de outros. Não se pode falar em normalidade institucional ou democrática quando o vice-presidente sabota o presidente de maneira aberta, numa típica conspiração palaciana.
Como chegamos até aqui? De um lado, há os erros grosseiros, de toda ordem, do Governo Dilma e do PT. A incompetência na gestão econômica é o mais visível e grave de todos (e parcialmente derivada de opções erradas ainda sob Lula). A nova matriz econômica, vendida em tom triunfalista pelo Governo, mas carente de substância teórica (apesar de encampada a posteriori por parte da academia, embalada ou não em conceitos igualmente ocos como ‘novo desenvolvimentismo’ e assemelhados), definitivamente não deu certo. Quando alguns sinais já apontavam para isso, principalmente em termos da insustentabilidade fiscal do modelo em época de retração, o Governo resolveu dobrar a aposta, piorando o quadro.
Além disso, o PT subestimou, em 2005 como agora, o impacto que escândalos de corrupção podem gerar sobre partidos de esquerda – vide o exemplo da esquerda italiana. Argumentar, de modo pueril, que "todos fazem" o que o PT fez baseia-se na falsa premissa de que todos os eleitores possuem o mesmo grau de tolerância em relação a desvios – para ficar apenas em um dos limites dessa conjectura.
No campo político vale destacar que o PT, muito competente como oposição, nunca aprendeu a ser bancada de Governo, ator central no relacionamento entre executivo e legislativo. De um lado, pelo esquizofrênico e fratricida comportamento de alguns de seus grupos internos, capazes de fazerem uma oposição mais dura ao próprio Governo do que o PSDB ou DEM. De outro, pela constante inabilidade política na construção e manutenção das coalizões e no jogo parlamentar cotidiano, por um partido que reluta em dividir espaço e que prefere apoiadores a aliados. Um partido que comanda o executivo e lidera uma coalizão formalmente majoritária no Congresso não pode ver uma figura como Severino Cavalcanti alçada à presidência da Casa. O Severino de 2005 foi um embrião ingênuo do fenômeno Eduardo Cunha, parido novamente pelo próprio PT dez anos depois. O lançamento de um candidato oficial à presidência da Câmara sem chances de vitória acabaria comprando uma guerra visceral contra o presidente eleito, além de deixar o partido do Governo sem qualquer assento na Mesa Diretora, instância vital ao controle do processo legislativo e, consequentemente, ao relacionamento Planalto-Câmara. Essa estratégia kamikaze fazia parte de um plano ainda mais genial, elaborado nas antessalas da Presidência da República: diminuir a dependência em relação ao PMDB, desidratando o poder do partido. Além do desafio no legislativo, a ideia era inflar partidos de aluguel, como PSD e PROS, para esvaziar o poder peemedebista. No entanto, quem não é páreo para um Severino Cavalcanti não pode dar um nó tático em raposas que comandam o Congresso há tempos. Planos ‘infalíveis’ como esses, dignos de um Cebolinha ou de Pink e Cérebro (o leitor escolhe, a depender de sua geração), desaguariam nos 367 votos pelo impeachment no 17 de abril.
Uma Presidência com baixa popularidade,
fragilizada por seus próprios erros e pela combinação de crises política
e econômica, representa uma oportunidade para outras forças políticas –
da oposição e da própria base de apoio – chegarem ao Governo sem ganhar
as eleições
Por fim, há um retrocesso recente, que pode ser institucionalizado em caso de vitória final do impeachment. Muito se fala sobre a judicialização da política e a politização da justiça. Mas já estamos alguns passos além, no terreno da partidarização de setores do judiciário – tão perniciosa quanto a partidarização dos quartéis dos anos cinquenta e sessenta. Promotores e procuradores messiânicos, juízes ególatras, ministros do STF imbricados na luta partidária cotidiana: combinados a relações incestuosas com setores da mídia, todos prestam um desserviço à democracia. O fim de combate à corrupção não legitima todos os meios empregados. O judiciário, importante ator no sistema de checks and balances da democracia brasileira pós-1988, não pode atuar como fonte de desequilíbrio ou braço jurídico de conspirações e disputas partidárias. O êxito do processo de impeachment, ao ‘validar’ tais procedimentos, pode significar que o retrocesso permanecerá como fonte de instabilidade nos anos vindouros – e mais um fator a comprometer a qualidade de nossa democracia.
A crise da democracia brasileira deve levar a algumas reflexões entre os cientistas políticos que estudam o país. O presidencialismo de coalizão, centrado numa toolbox à disposição do executivo para incentivar o legislativo a cooperar (cargos, emendas ao orçamento, poderes legislativos da Presidência etc.), não é uma ciência exata. Como destacaram alguns poucos dentre nós (como o cientista político argentino Vicente Palermo, em artigo publicado na revista Dados em 2000), os elementos de negociação executivo-legislativo não são suficientemente destacados na literatura especializada, assim como a importância de dois outros fatores: a adequação entre estilo do presidente e arranjo institucional, e o papel da envergadura e do capital político do presidente para o sucesso da gestão. Dilma não é Collor, mas tampouco é FHC ou Lula. Como primeiro presidente, na democracia atual, que nunca ocupou cargo eletivo anterior, talvez tenha faltado à mandatária o entendimento sobre o funcionamento institucional do país (sobretudo em relação ao Congresso), vital para garantir o papel que cabe à Presidência nessa morfologia: de eixo central de negociações e emanação de agenda para diversos outros atores políticos.
Agora, talvez deixemos de ver o impeachment como medida excepcional para incorporá-lo como parte do toolbox do legislativo: uma arma política engatilhada contra presidentes que não rezem pela cartilha da maioria do Congresso. É dessa forma que o impeachment tem substituído o golpe militar como uma das fontes de instabilidade política na América Latina desde os anos noventa – como mostra o excelente livro de Aníbal Pérez-Liñán, Presidential Impeachment and the New Political Instability in Latin America (2007).
Por fim, será preciso refletir sobre a desconexão entre consolidação e estabilidade institucional, de um lado, e cultura política do outro. O eleitorado brasileiro continua ocupando, há muitos anos, as últimas posições em quase todos os surveys sobre aderência a valores democráticos – basta comparar com os vizinhos latino-americanos, por exemplo, nas pesquisas do Instituto Latinobarómetro. Tempo de democracia e consolidação institucional (e aumento de escolaridade, poderíamos acrescentar) não têm se traduzido em fortalecimento de uma cultura política democrática. Apoio à democracia continua se confundindo, em grande medida, ao apoio a governos bem-sucedidos, sobretudo na economia. Mas falar em surveys se torna supérfluo quando vemos apoiadores do afastamento (com escolaridade acima da média) desfilando, fazendo selfies, carregando cartazes com ‘Meu partido é o Brasil’ (frase-pesadelo dos cientistas políticos), e brandindo patos amarelos pelas ruas de São Paulo – imagens amplamente exploradas (e ridicularizadas) pela mídia internacional, muito mais crítica ao processo em curso do que os maiores órgãos brasileiros. (Se aquela e seus analistas são parte do esquema lulo-petista, é algo ainda a se conferir.)
Se parte das forças governistas está insatisfeita, tem todo o direito de passar para a oposição
A democracia comporta gestões melhores e piores, e à oposição (recente ou antiga) cabe fustigar o Governo à espera de novas eleições, quando disputará a narrativa sobre a administração que se encerra em busca do voto popular. Qualquer coisa fora disso recoloca o país no circuito das repúblicas bananeiras - seja uma quartelada clássica, seja a congressada e conspiração palaciana ora em curso. O vice ansioso parece muito atento às pompas e circunstâncias, e preocupado com a autoimagem e seu lugar na história. Pois bem: deve saber que está chegando à Presidência de braços dados com o que há de pior na política brasileira – incluindo o deputado misógino, travestido de valentão linha-dura, capaz de regozijar-se com a dor da tortura alheia, numa das piores canalhices já registradas no parlamento brasileiro. Envergonhado, o velho Ulysses daria um pito em Michel por tirar Eduardo Cunha do rodapé da crônica política de 2015 para fazê-lo primeiro-ministro do governo peemedebista, e talvez ocupante da cadeira presidencial por algumas ocasiões. Temer está garantindo, assim, um lugar menos decorativo na história política brasileira – história que comporta, no entanto, papéis de todos os tipos. O dele dificilmente será dos mais honrosos.
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/28/opinion/1461867553_557648.html
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