Visão caricatural da escravidão contribui para a persistência do problema, dizem pesquisadores
Ricardo Rezende
14/11/2014
Por Thais Brianezi
Da Repórter Brasil
A 7ª Reunião Científica sobre Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas, iniciada em São Paulo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) na última quarta-feira, 11, aponta um grande desafio para a erradicação dessa prática criminosa no Brasil: desfazer a imagem caricatural que grande parte da nossa sociedade, inclusive muitos juízes, tem em relação à escravidão contemporânea.
Não é uma tarefa fácil. E um exemplo da dificuldade está no levantamento feito por Mariana Armond Dias Paes, mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Em sua dissertação, ela analisou 52 apelações criminais ao Tribunal Regional da Primeira Região (TRF-1) relativas a decisões de primeira instância que absorveram os réus acusados de explorar trabalho escravo. Dessas, em 54% dos casos os desembargadores mantiveram a decisão de inocentar o empregador, alegando ausência de provas ou discordância com o conceito de trabalho análogo à escravidão definido no artigo 149 do Código Penal.
“A visão de escravidão deles é a das correntes, a do escravo passivo, que já está superada inclusive do ponto de vista histórico”, problematizou a pesquisadora. “Nem no século 19 a escravidão no Brasil se caracterizava pela restrição total da locomoção do trabalhador ou sua total submissão ao empregador. Então, por que tentar definir trabalho escravo no século 21 a partir de uma visão estereotipada?”, completou ela.
O artigo 149 do Código Penal brasileiro tipifica o trabalho escravo como crime, com pena de dois a oito anos de cadeia para quem se utilizar dessa prática. Ele prevê que o trabalho escravo contemporâneo ocorre quando se configura pelo menos um desses quatro elementos: cerceamento de liberdade de se desligar do serviço, servidão por dívida, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva.
Rayana Wara Campos de Arruda, pós-graduanda em Direito pela PUC-MG, constatou em sua pesquisa que os casos de condenação por trabalho escravo aumentaram significativamente após 2006, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu a competência da Justiça Federal para cuidar das ações baseadas no artigo 149 do Código Penal. “De 2009 em diante, principalmente, tivemos condenações no Pará, Maranhão, Piauí e Rio de Janeiro. A maior parte delas caracterizou o trabalho escravo a partir das condições degradantes e da jornada exaustiva”, detalhou a pesquisadora.
“As situações de trabalho forçado, servidão por dívida, retenção de documentos ou vigilância ostensiva ainda existem, mas são cada vez mais difíceis de comprovar. Os auditores do trabalho já não encontram os cadernos de dívida mantidos pelos empregadores, que estão cada vez mais cientes da possibilidade de fiscalização”, afirmou José Claudio Monteiro de Brito Filho, doutor em Direito pela PUC- SP, professor titular da Universidade da Amazônia (Unam) e professor da pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). “É por isso que agora há uma tentativa de se retirar as condições degradantes e a jornada exaustiva na regulamentação da Emenda 81 [que prevê a expropriação de propriedades rurais e urbanas nas quais for flagrado o uso do trabalho escravo e sua destinação para reforma agrária ou programas de habitação]”, alertou o pesquisador.
“Foi o reconhecimento das condições degradantes como uma característica suficiente para definir a escravidão contemporânea que permitiu avanços como o enfrentamento ao trabalho escravo urbano”, ressaltou Luís Antônio Camargo de Melo, procurador geral do Trabalho, que participou da mesa de abertura do evento. “Não podemos retroceder nesse entendimento. E é preciso que a academia nos ajude também a fortalecer a visão de que a restrição de liberdade passa pela impossibilidade concreta de o escravizado romper a relação de trabalho perversa que se estabelece”, defendeu ele.
Chineses escravizados no Brasil
O coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo – GPTEC/NEPP-DH/UFRJ e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ricardo Rezende, também fez parte da mesa de abertura da reunião científica. Ele lembrou outra realidade emergente que traz um novo desafio ao enfrentamento do trabalho escravo contemporâneo no Brasil: a exploração de chineses, geralmente por seus compatriotas migrantes. “O GPTEC está como uma pesquisa em curso há dois anos sobre o trabalho escravo chinês no Rio de Janeiro. Há dificuldades extras, em virtude principalmente da língua e do medo que eles têm de falar”, contou Rezende.
O pesquisador relatou o esquema do tráfico de chineses para trabalho escravo no Brasil. “Eles chegam ao aeroporto apenas com bagagem de mão, para não serem parados na alfândega, já com uma dívida de entre R$ 30 e R$ 40 mil reais com o empregador. Trabalham 14 horas por dia, inclusive aos domingos. Os homens em geral ficam na cozinha e limpeza, sem contato com o nosso idioma. As mulheres é que costumam trabalhar no balcão e aprendem um pouco de português”, detalhou Rezende.
Pesquisadores do GPTEC acompanharam de perto o caso do adolescente chinês que escapou de madrugada da pastelaria onde era explorado e conseguiu pedir ajuda usando um serviço online de tradução. Rezende lembrou outro trabalhador chinês escravizado, que matou o patrão a facadas (e cuja história foi coberta pela imprensa como um crime passional), e ainda o jovem chinês que era torturado pelo empregador e foi atendido pela polícia civil e levado à UTI. “Os policiais federais foram ouvi-lo, com auxílio de um tradutor indicado pelo Consulado chinês. Um pesquisador nosso, que fala mandarim, estava junto. Ele percebeu que o tradutor estava ameaçando a vítima – e depois soubemos que esse tradutor era também dono de pastelaria e amigo do proprietário que estava preso”, revelou o coordenador do GPTEC.
Representações e estigmas
O bloco temático que abriu a reunião científica tratou da definição e do conceito de trabalho escravo. Cinco dos três trabalhos apresentados tiveram em comum um olhar para as representações sociais sobre o trabalho escravo contemporâneo e, especialmente, para os estigmas que recaem sobre os trabalhadores escravizados.
Fagno da Silva Soares, doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), colheu depoimentos de trabalhadores escravizados na produção de carvão para a indústria siderúrgica em Açailândia (MA), usando a metodologia da história oral. O mesmo grupo social foi pesquisado por Flávia Moura, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e doutoranda em Comunicação pela PUC-RS, que está estudando como as representações jornalísticas televisivas sobre o trabalho escravo contemporâneo influenciam a visão que os trabalhadores constroem de si mesmos.
“Escravidão é um termo muito datado historicamente. Entendo o seu uso político, mas academicamente prefiro falar em escravização”, justificou
Soares. “A mídia televisiva tende a reforçar o imaginário do trabalho escravo colonial, principalmente pelo uso de imagens. Isso estigmatiza os trabalhadores, que em geral só se reconhecem enquanto escravos quando o auditor fiscal, o movimento social ou o jornalista o chamam assim. E eles passam a assumir essa identidade como estratégia para ter acesso a políticas públicas”, provocou Flávia.
Jaqueline Gomes de Jesus, professora doutora de Psicologia Social da Universidade de Brasília (UnB), reforçou a crítica ao uso da categoria escravo. “Escravo já traz em si um processo de reificação, de transformação da pessoa em objeto, em um ser passivo”, criticou ela. “Mas isso não se tira do trabalhador a possibilidade de insubordinação, como tem acontecido desde o período colonial. As identidades, aliás, geralmente se formam assim: a partir de classificações dadas pelos outros”, ponderou Jaqueline.
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