ENTREVISTA: “A política só pode ocorrer entre homens livres”, afirma Zé Raimundo

ENTREVISTA: “A política só pode ocorrer entre homens livres”, afirma Zé Raimundo

"Além das mudanças materiais, das condições de vida, como o transporte, a habitação, cuidar também da revolução moral e intelectual para que a humanidade se redima de suas situações opressivas"
“Além das mudanças materiais, das condições de vida, como o transporte, a habitação, cuidar também da revolução moral e intelectual para que a humanidade se redima de suas situações opressivas”
O cenário político brasileiro – em tudo sombrio para Dilma Rousseff, que viu sua popularidade despencar após as manifestações juvenis de Junho – vai, aos poucos, ganhando novos contornos, com pesquisas que vão demonstrando a recuperação do fôlego eleitoral da presidenta, graças, especialmente, ao arrefecimento dos protestos, que continuam acontecendo, mas que, nem de longe, lembram o vigor dos dias de junho.
Historiador e cientista político que não se limita à análise meramente circunstancial dos acontecimentos políticos, buscando sempre a origem e os desdobramentos dos mesmos – ainda que, para tanto, se veja obrigado a percorrer inclusive os caminhos espinhosos da Filosofia –, o deputado estadual José Raimundo Fontes acredita na imperiosa necessidade de uma “revolução moral e intelectual”, que devolva à política sua condição de espaço de diálogo, de construção coletiva.

Em conversa com o Blog do Fábio Sena, Zé Raimundo não deixa de demonstrar uma certa impaciência, não para assistir a uma mera reforma política, mas à reforma do Estado Brasileiro, o que inclui, na visão do historiador, inclusive, uma revisão do Poder Judiciário. “Se você não muda a estrutura do Estado, você não vai conseguir tornar eficaz essa mudança na representação das instituições políticas”, argumenta.
A entrevista, que segue, na íntegra, logo abaixo, mostra que o ex-prefeito Zé Raimundo interpretou as manifestações de Junho como “um sentimento anticapitalista”, parte de um movimento internacional que visa aprofundar a democracia, que busca assegurar a participação das pessoas nos processos decisórios. “Traz o sentimento internacional quanto ao papel dos grupos sociais, dos cidadãos na vida e no processo decisório sobre os destinos de uma nação”.


BLOG DO FÁBIO SENA: Deputado, depois de um período de queda em pesquisas que avaliavam sua popularidade, especialmente decorrente das manifestações de junho, a presidenta Dilma Rousseff parece retomar seu fôlego, ao menos é o que demonstra pesquisa recente da Vox Populi, segundo a qual ela vai bem na corrida eleitoral. Como o senhor está enxergando a conjuntura política brasileira hoje?
 ZÉ RAIMUNDO: É uma conjuntura desafiadora, que traz novos elementos para a análise da política no Brasil, traz também novas questões na forma como o PT vinha governando o Brasil. Essa jornada de junho envolve também questões estruturais da sociedade brasileira; traz ainda o sentimento internacional quanto ao papel dos grupos sociais, dos cidadãos na vida e no processo decisório sobre os destinos de uma nação. Sendo sintético, eu diria que essas manifestações procuram questionar a forma como os investimentos no Brasil estão sendo feitos, em particular a necessidade de melhorarmos a vida nas grandes cidades, que foi, no começo, o estopim: a questão do transporte coletivo, do movimento passe livre, em São Paulo, que, em seguida, vai se alargando e colocando novas reivindicações, como a questão da saúde e da educação. E, finalmente, entra no aspecto mais político, que é a questão da corrupção, a questão da falência das instituições representativas, especialmente o parlamento, daí as câmaras municipais e as assembleias foram invadidas, o próprio Congresso Nacional teve momentos de tensão muito fortes, e em outras capitais ocorreram manifestações semelhantes. Então, nós temos aí, a meu ver, uma série de questões que merecem ser debatidas e aprofundadas.

BLOG DO FÁBIO SENA: A presidente Dilma Rousseff parece ter compreendido rapidamente a dimensão das manifestações…
 ZÉ RAIMUNDO: A presidenta Dilma, após as primeiras manifestações, veio a púbico manifestar o seu reconhecimento, a legitimidade do movimento, no que diz respeito às reivindicações, ressalvando as medidas e atitude agressivas, que jogam contra os princípios da democracia, com depredação de bens públicos e da propriedade privada, embora mereçam um capítulo esse sentimento aí da raiva, porque, aliás, ocorreu no mundo inteiro, na Europa, e, mais recentemente, de dois anos para cá, no Oriente Médio, por último na Turquia, que transita ali entre o Oriente e o Ocidente, e ainda a crise mais recente No Egito e na Síria, então há clima internacional, um sentimento anticapitalista, da necessidade do avanço da democracia, e isso foi percebido aqui também, com os elementos próprios do Brasil, com o questionamento da destinação dos recursos da Copa, e o governo brasileiro sinalizou no sentido de fazermos uma inflexão, uma mudança nesses pontos.

BLOG DO FÁBIO SENA: E o governo assumiu a dianteira, com uma série de medidas.
 ZÉ RAIMUNDO:  Já estão aí colocadas alternativas como os royalties para a educação, para a saúde, tem o compromisso da presidenta Dilma de um pacto pela mobilidade urbana, acelerar essas obras de grande envergadura nas capitais e grandes e médias cidades que ainda sofrem com essa questão; também é muito importante a atitude da presidente Dilma quanto ao tema da política, propondo uma reforma que vai ser feita provavelmente por etapas. A ideia da presidente Dilma era uma Constituinte ou um Plebiscito, e isso está sendo amadurecido no Congresso Nacional, por tudo isso acho que a presidenta Dilma se credencia.

BLOG DO FÁBIO SENA: Mas o impacto inicial foi agudo?
ZÉ RAIMUNDO: Claro que, naquele primeiro momento, a reação foi muito forte e visualizou na pessoa dela parte dessa responsabilidade, mas que não é uma responsabilidade específica da presidente, até porque a questão da mobilidade urbana é uma responsabilidade dos Estados, dos Municípios e também da União. Mas ela assumiu toda essa carga de demanda e está encaminhando a solução. E eu não tenho dúvida de que o povo brasileiro vai reconhecer os avanços que foram feitos, as extraordinárias experiências que o Governo Lula iniciou, com transferência de renda, mobilidade urbana, com a criação das novas universidades, educação para a juventude, novas oportunidades para o desenvolvimento regional, desconcentrando investimentos; veja aqui Vitória da Conquista, com mais de R$ 1 bilhão investidos; então, é uma extraordinária conquista do povo brasileiro. Agora, claro que falta a percepção da população de que essas mudanças precisam e devem continuar sendo implementadas, mas dentro de um tempo necessário para que os governos municipal, estadual e federal se adequem a essas novas demandas, redirecionem suas prioridades, para atender a população, especialmente na uestão da  qualidade de vida. Veja um dado importante: nos últimos seis anos, nós saímos de 47 milhões de passageiros de avião para mais de 100 milhões/ano, saímos de 62 milhões para 64 milhões de passageiros/ano de ônibus; então, é claro que isso vai ter uma pressão sobre a infraestrutura aeroportuária, é claro que você vai ter novas demandas. Por isso, estou bastante otimista de que a presidenta Dilma vai chegar bem, vai acelerar essas obras e essas ações, sobretudo, vai fazer esse contato direto com a população, essa função pedagógica de explicar essas transformações e anunciar novos compromissos e com isso chegaremos bem em 2014.

BLOG DO FÁBIO SENA: O deputado fala de uma certa falência da representação política. O Partido dos Trabalhadores surgiu dentro de uma proposta de transformação da sociedade, inclusive da política. Qual a receita para que ocorra uma mudança na cultura política brasileira, especialmente com as mensagens emitidas em junho?
ZÉ RAIMUNDO: A mudança precisa ter, a meu ver, dois componentes. Um componente institucional, formal; e uma atitude mais coletiva de assimilação de novos valores na política. Veja que quando nosso partido nasceu ele trouxe consigo um conjunto de atores, um conjunto de grupos sociais marginalizados historicamente, as periferias, os negros, os operários; um partido que saía da lógica dos partidos elitistas; ele saia da tradição vanguardista de esquerda e saía também daquela tradição mais populista, reformista, que tinha na socialdemocracia europeia o modelo.

BLOG DO FÁBIO SENA: E recusava também o modelo stalinista-leninista…
ZÉ RAIMUNDO: Então, um partido de massas, com a proposta de incorporar trabalhadores, aberto aos intelectuais e às igrejas, aos movimentos sociais, para dar energia à ação política. E nós conseguimos isso. Mas ao chegar ao poder, já agora, no início dessa primeira década do terceiro milênio, ocorreram transformações no mundo do trabalho, na vida urbana, com a fragmentação, com a desregulação social na Europa, iniciando em vários países da América Latina e no Brasil o Neoliberalismo, isso enfraqueceu um pouco a energia dos movimentos populares; mas também nós chegamos ao poder através de um sistema de coalizão, então, os dois primeiros governos de Lula ficaram meio que amarrados no flanco da economia e não avançamos na reforma política; houve aquele problema do Caixa 2, o que também prejudicou a capacidade de iniciativa política naquele momento, e o sistema não foi mudado. Mas agora, com essas manifestações, o partido retoma, anunciando a necessidade de uma Constituinte soberana, que seria o ideal pra gente fazer uma reforma do Estado e uma reforma político-eleitoral. Porque, se a política eleitoral é feita no Estado, se você não muda a estrutura do Estado, você não vai conseguir tornar eficaz essa mudança na representação das instituições políticas. Mas também as mudanças nas instituições políticas podem ajudar na mudança do Estado. O ideal é que tivéssemos uma mudança do Judiciário, na estrutura de poder do Congresso Nacional, das assembleias legislativas, o Pacto Federativo, criando mecanismos eleitorais e partidários para dar transparência e evitar o vício da burocratização desses partidos.
BLOG DO FÁBIO SENA: O que o PT propõe?

ZÉ RAIMUNDO: O PT propõe uma Constituinte, sinaliza para uma lista preordenada para evitar uma oligarquia partidária, incluindo aí negros, índios e mulheres, inclusive a composição dos diretórios do PT já vão seguir uma representação mais plural e rica. Então, essa lista preordenada serve para você ter uma renovação, inclusive com proibição de renovação de mandatos para o mesmo cargo; e o essencial: o financiamento público de campanha, para nós evitarmos o clientelismo, a corrupção eleitoral, o Caixa 2, evitarmos também a disputa fratricida dentro dos partidos; um outro elemento é a questão das coligações; então são medidas que poderiam ajudar em muito a cultura política porque mudaria a relação do candidato com o partido e do partido com o candidato, do candidato com o eleitor e do eleitor, por consequência, com sua representação.

BLOG DO FÁBIO SENA: E tem também a questão do custo da democracia.
ZÉ RAIMUNDO: Pois é. É uma questão que poderia, em seguida, trabalhar essa questão do custo da democracia. Segundo dados do relator Henrique Fontana, se estimou que foram gastos R$ 5 bilhões nas eleições, está na reportagem que ele deu na Carta Maior. Isso para o processo eleitoral. Agora examine os custos das assembleias legislativas, do Congresso Nacional, das câmaras de vereadores; então, o custo da democracia poderia ser readequado com esse processo de reforma política. Então, você teria destinado mais poder aos partidos, partidos mais democráticos, a diminuição das siglas de aluguéis, que é outro mecanismo de você fazer a chantagem com o Poder Executivo, com os prefeitos, com os governadores e com o presidente da República…

BLOG DO FÁBIO SENA: Como ocorreu com Lula e com Dilma…
ZÉ RAIMUNDO: Sim. Porque o que ocorreu, na verdade, em 2005, foi a chantagem dos aliados, com Caixa 2, para poder pagar seus fundos de campanha. Não houve desvio de dinheiro para nenhuma daquelas figuras que estão sendo condenadas; na verdade, eles são culpados sem culpa, como diria Hannah Arendt com relação a alguns julgamentos…

BLOG DO FÁBIO SENA: Como os que ocorreram com nazistas em Jerusalém.
ZÉ RAIMUNDO: Exatamente. É um processo coletivo, é um processo de cultura política, do Caixa 2. Então essa reforma poderia fazer uma verdadeira faxina na vida política, nos mecanismos, melhor dizendo, da política, e voltarmos a legitimar a política enquanto espaço do diálogo, enquanto construção coletiva; a única possibilidade de existir política é a liberdade, do eleitor, dos candidatos, para debater temas de interesse da humanidade e de suas comunidades, de forma livre e visando o bem-comum. Esse é o sentido da política, e só pode ocorrer entre homens livres. Na verdade, a política, como pensou Aristóteles, não está no homem biológico, está no homem social. Então, está entre os homens. E os homens são diferentes, os interesses são divergentes na sociedade, daí ser fundamental essa atividade pública ser valorizada para que ela possa refletir a vida cotidiana, o presente e o futuro, no sentido de buscar novos caminhos, novas alternativas de humanização do homem em sua trajetória histórica. Então, essa é a responsabilidade que o partido deve promover. Além das mudanças materiais, das condições de vida, como o transporte, a habitação, cuidar também da revolução moral e intelectual para que a humanidade se redima de suas situações opressivas, de exclusão, de violência, de autodestruição e busque um caminho mais libertário.

BLOG DO FÁBIO SENA: Em entrevista a este blog, o presidente nacional do PCdoB, Renato Rabelo, manifestou-se favorável à criação de novos partidos, afirmando, inclusive, que o PCdoB, por ter sido submetido à clandestinidade, não poderia defender o contrário. Mas como o deputado Zé Raimundo vê essa verdadeira proliferação de novos partidos no Brasil?
ZÉ RAIMUNDO: Olha, no debate anterior que houve sobre a cláusula de barreiras, que queriam impor e que o Supremo Tribunal Federal não aceitou, ressalvava que os partidos de identidades históricas, como o PCdoB, tinham a legitimidade para sua existência. É claro que aí você particulariza uma situação que poderia criar um debate jurídico. Então, esse foi um dos motivos que fez vencer essa tese. Eu acho que deva ter uma forma de garantia da representação de um espectro da sociedade, ideológico, não é?, porque efetivamente há um monte de partidos que não se sabe de onde vem, para onde vai, qual a origem, não se sabe a identidade, e são partidos que acabam tendo influência no horário de televisão, no fundo partidário, e ninguém sabe, muitas vezes, como são feitas essas coligações com esses partidos que aumentam ou duplicam o tempo de um partido maior. Então, merece atenção e merece debate. A priori, há uma pulverização, uma proliferação exagerada e a gente precisa cuidar disso, manter uma redução, mas com a garantia da expressão da liberdade para segmentos ideológicos, matizados historicamente.

Fonte: http://blogdofabiosena.com.br/v1/entrevista-a-politica-so-pode-ocorrer-entre-homens-livres-afirma-ze-raimundo/

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