Relatos de um desastre anunciado
Caderno escrito por Anna de Assis revela bastidores do casamento conturbado, mais de 100 anos após a morte de Euclides da Cunha
Alice Melo e Angélica Fontella
1/12/2014
“Não venho ofender nem acusar”, justificou-se S’Anninha na primeira página do pequeno caderno em que se propunha a narrar episódios da vida conjugal com o primeiro marido. Uma vida, segundo ela, marcada por infelicidade, desgosto e humilhação. “Venho cumprir com um sagrado dever e dar desencargo à minha consciência e tranquilidade a meu espírito, dizendo que de nós três: Euclides, Dilermando e eu, três criminosos, o mais responsável sou eu. Sim! E isso porque, abrindo as portas do lar a um desconhecido de meu marido, ausente, longe, perdido no extremo norte do Brasil, abria também as do crime, fechando-as sobre a primeira vítima enlaçada e escolhida pela fatalidade”.Até a sua morte, em 1951, Anna não falou publicamente sobre o ocorrido. Segundo a família, ela costumava dizer que o silêncio era sua defesa. Não se calou para sempre: deixou um testemunho que ficou guardado por mais de 100 anos numa estante em Belo Horizonte. O manuscrito intitulado O Caso do homicídio de Euclides da Cunha por Dilermando de Assis – Exposição e narrativa dos fatos feitos escrito do próprio punho da mulher da vítima estava entre as coisas de Gregório Seabra Jr. (1874-1941). Assistente do advogado Evaristo de Moraes, que defendeu Dilermando nos dois julgamentos que o absolveram por legítima defesa, em 1911, pelo assassinato de Euclides da Cunha e, em 1916, pelo do filho, Quidinho. Em maio passado, o bisneto de Seabra Jr., Luiz Henrique Oliveira, encontrou o documento e decidiu devolvê-lo à família de S’Anninha. “Era o desejo de meu bisavô e, depois, meu pai, mas naquela época não existia internet. Ninguém podia ler, era assunto confidencial”, conta.Feita a vontade dos antepassados, hoje o caderno está nas mãos de Anna Sharp, neta de S’Anninha e Dilermando, que é escritora e assumiu um compromisso com a memória da avó. Assim que terminar o livro Vozes do passado, sobre a Tragédia da Piedade, pretende doar o manuscrito à Biblioteca Nacional. Por ora, o material está fora do alcance de pesquisadores e jornalistas, com exceção de alguns trechos, aos quais a reportagem teve acesso.
primeira noite com Euclides. As núpcias foram um estupro, ele rasgou todas as roupas dela, chamando-a de ‘vaca’. Ela conta essa brutalidade, o ódio que ele tinha das mulheres”.Euclides da Cunha é retratado como um homem que tinha acessos de raiva, antes mesmo de saber que era traído. Nesses momentos de cólera, o escritor xingava a esposa, cuspia-lhe na face e a ameaçava. Em uma página, ela narra que ele “insultava-me como um alucinado, rompendo nos maiores destemperos, tomando os meus vestidos e despedaçando-os todos nas maiores ameaças”. Segundo ela, o marido “queria impor-me o amor e pretendia-o por meio dos insultos e das brutalidades!”. Em uma passagem forte, S’Anninha acusa-o de tê-la forçado a beber seu escarro de sangue que fora depositado em um balde, após uma crise de tosse tuberculosa. “Dispus-me a suportar com paciência o meu triste fardo, tratando com a estima natural e derivada convivência diária. Detestava-o, no entanto, e o temia”, escreve.Não há registro da guerra entre quatro paredes sem ser pelos relatos de S’Anninha – incluindo o último depoimento à polícia. Mas o caso é que a moça não escondeu a traição durante três anos, tendo engravidado duas vezes do amante. Da primeira, nasceu Mauro, que teve uma morte misteriosa, por inanição, aos 7 dias de vida. S’Anninha acusa Euclides de tê-la proibido de amamentar o bebê. Da segunda, surgiu Luiz, registrado como da Cunha, mas que o escritor chamava raivosamente de “a espiga de milho num cafezal”, devido aos cachos loiros que a criança herdou do cadete.Biógrafos do escritor chegaram a supor que S’Anninha se entregou aos desejos da carne devido à ausência prolongada do marido em casa. Em dezembro de 1904, poucos anos após ter sido correspondente do jornal O Estado de S. Paulo na Guerra de Canudos, Euclides, autor já conhecido por Os Sertões (1902), embarcou para uma expedição à Amazônia. Só regressaria ao Rio de Janeiro em 1906, encontrando Anna Emília grávida de três meses. A própria S’Anninha se acusa: “se errei, errava porque queria errar. Tinha liberdade de ideias, de sentimentos, de amar. Portanto, não digam que foi a liberdade derivada da ausência de Euclides a causa do meu passo. Não! Não, porque sempre a tive, mesmo com a sua presença que me não tolhia”.
perdeu a mãe aos 3 anos e foi criado por parentes, já que o pai viajava sempre a trabalho. Desde jovem, outros sentimentos lhe eram mais significativos, como honra, lealdade e honestidade. “A mulher, para ele, era uma parte do protocolo social. Acredito que não teve um pendor muito forte para a relação amorosa. Ele tinha suas perturbações mentais, era muito nervoso, explosivo.Ficava evidente no meio social e as pessoas tentavam se manter afastadas”. Sua poesia, por exemplo, apesar de romântica, era política, tinha apreço pelos ideais da Revolução Francesa. Poucas foram as vezes em que se aventurou a escrever sobre amor e, segundo o professor, quando o fazia, era de forma superficial. Para ele, “Euclides foi vítima de seu tempo e de si mesmo”.Mary del Priore, autora de Matar para não morrer, indica que é preciso relativizar o relato autobiográfico, principalmente neste caso, em que S’Anninha teria escrito seu depoimento logo após a morte do marido, em um momento em que era condenada fortemente pela opinião pública. A historiadora comenta que “a questão da honra masculina e a virilidade eram coisas muito importes para o homem do fim do século XIX e início do XX. Homens preferiam morrer a ter a honra questionada”.A defesa da honra matou quatro pessoas. O primeiro foi Euclides da Cunha, que num acesso de raiva partiu para Piedade com uma pistola emprestada nas mãos, alvejando não só Dilermando, mas o irmão Dinoráh, jogador de futebol do Botafogo, que cometeu suicídio por complicações posteriores. Logo depois, Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, para limpar o nome da família, atacou pelas costas Dilermando, então marido de Anna Emília. Teve o mesmo destino do pai. O quarto morto seria o próprio Dilermando, que faleceu de infarto em 1951. “Ele foi o mais prejudicado, pois foi condenado a carregar nas costas a pecha de causador de um desastre do qual foi vítima. Seu erro: tinha apenas 17 anos e apaixonou-se por uma mulher bem mais velha, que sabia o peso dos passos que deu para a desonra da família”, afirma Mary del Priore.A tragédia começou no altar e culminou num desastre com muitas vítimas. Como o professor Bernucci lembrou, “aquele casamento foi uma combinação que não deu certo desde o começo”. Uniu sob o mesmo teto uma mulher que preferiu amar sem se ater às convenções sociais e um homem para quem uma ideia tradicional de família era mais importante do que a própria vida.Saiba Mais:ASSIS, Judith Ribeiro de. Anna de Assis: História de um trágico amor. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2008.DEL PRIORE, Mary. Matar para não morrer. Rio de Janeiro: Editora Objetiva. 2009.GALVÃO, Walnice Nogueira. Euclides da Cunha – Autos do processo sobre sua morte. São Paulo: Terceiro nome, 2009.
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