Novo apartheid?
Israel, rumo ao apartheid
Para agradar à ultradireita, projeto do governo coloca o judaísmo de Estado acima da democracia e dos direitos humanos
Benjamin Netanyahu durante entrevista coletiva em 1º de dezembro: ele faz mais um aceno para os extremistas
Dizer que Israel é um
“Estado Judeu” pode soar trivial, mas não é. A expressão consta da
Declaração de Independência, mas sem uma definição clara. O conceito de
“judeu” é problemático e seus primeiros líderes se queriam modernos e
laicos, mesmo se não se importavam se isso soava às minorias tão
ofensivo quanto seria os Estados Unidos se proclamarem “Estado
Anglo-Saxão Protestante” ou o Brasil “Estado Eurodescendente Católico”.
Na prática, isso não impediu Tel-Aviv de
tratar como cidadãos de segunda classe os não judeus, principalmente os
árabes que não conseguiu expulsar em 1948. Os cidadãos são oficialmente
classificados por “le’om”, “etnia”: “judeu” para os cidadãos de primeira
classe, “russo”, “francês” e assim por diante para filhos de judeus
laicos casados com não judias e não convertidos por rabinos ortodoxos,
“árabe”, “druso” ou “beduíno” para os nativos, um quarto da população.
Esse item deixou de ser exigido nas carteiras de identidade em 2005, mas
permanece no registro civil e, para deixar clara a distinção, só os
judeus têm na carteira a data de nascimento pelo calendário judaico. Não
há casamento civil, o que torna impossível o casamento misto se um dos
noivos não se converter. Vários direitos sociais exigem o cumprimento do
serviço militar, permitido aos “drusos”, mas não aos “árabes”
israelenses. Vale notar ainda a invenção em 2014 da etnia “arameu” para
cristãos que não querem ser identificados como árabes e se dispõem a
servir no Exército para desfrutar de mais direitos.
A Organização para a Libertação da Palestina reconheceu
Israel em 1993, porém desde 2006 Tel-Aviv faz de seu não reconhecimento
como “Estado Judeu” um novo pretexto para não avançar nas negociações de
paz. O significado disso não era claro, mas a Palestina resistiu por
entender que aceitar a exigência implicava a renúncia incondicional ao
direito dos seus compatriotas expulsos em 1948 de retornar ou serem
adequadamente indenizados.
Agora, Benjamin Netanyahu
aprovou e submeterá ao Parlamento uma proposta explícita de proclamar
um “Estado Judeu”. Foi rejeitada por 6 dos 20 ministros, inclusive a
titular da Justiça, Tzipi Livni, e o da Fazenda, Yair Lapid, líderes dos
respectivos partidos, e criticada pelo presidente Reuven Rivlin, do
mesmo partido Likud do primeiro-ministro. Este, mesmo assim, exige o
reconhecimento do país nesses termos como base para negociar a paz. Para
ele, trata-se de galvanizar a direita radical em torno de seu projeto e
convocar novas eleições que lhe permitam dispensar os centristas.
Segundo as três propostas da bancada
governista a serem unificadas por Netanyahu, “o direito à
autodeterminação no Estado de Israel pertence apenas ao povo judeu” e o
país é definido como “fundado de acordo com a visão dos profetas de
Israel”. O Estado deve impor o ensino da história, cultura e costumes
judeus nas escolas judias, estabelecer o Sabbath como dia de repouso,
fortalecer os laços com a Diáspora judia e “proteger e resgatar” judeus
em perigo por todo o mundo. Deve ainda “manter os direitos individuais
de todos os cidadãos de acordo com a lei”, mas o país não tem uma
Constituição para garantir a igualdade dos direitos individuais, muito
menos dos coletivos. A proposta autoriza os não judeus a preservar sua
religião e cultura em caráter pessoal, embora sem nenhum apoio oficial.
Duas das propostas acrescentam que “a lei
judia deve guiar os legisladores e juízes”, uma contrapartida exata da
exigência dos movimentos fundamentalistas islâmicos de impor a sharia
como lei civil em seus países. Uma delas abole explicitamente o uso
oficial do árabe e explicita que o Estado pode criar cidades e bairros
reservados a judeus.
O objetivo explícito da lei é enquadrar o
Judiciário, que tem dado prioridade aos direitos humanos ao obrigar o
Estado a respeitar a unificação de famílias e dar cidadania a palestinos
casados com árabes israelenses, recentemente exigiu o fim do campo de
concentração para imigrantes africanos sem documentos, ordem desacatada
pelo Executivo, e cobrou do governo que providencie sinalização bilíngue
em cidades de população mista e ajude a manter instituições muçulmanas.
Menos explicitamente, está na mira da lei a possibilidade de cassar a
cidadania de não judeus acusados de “deslealdade” (por protestar, por
exemplo) e banir os partidos árabes e seus deputados. Paralelamente, foi
apresentado um projeto que permite cassar os mandatos daqueles que
apoiarem a “resistência armada”.
O secretário de
Estado dos EUA, John Kerry, criticou: “Israel é um Estado judeu e
democrático e todos os seus cidadãos devem gozar direitos iguais.
Esperamos que Israel se apegue a seus princípios democráticos”. Ze’ev
Elkin, deputado do Likud, líder da bancada governista e autor da versão
mais radical do projeto, bravateou: “Podemos manter as fundações da
democracia mesmo sem ajuda do parceiro do outro lado do oceano”. O
ministro da Economia, Naftali Bennett, do partido Lar Judeu, respondeu
nos mesmos termos: “Digo aos americanos que nós mesmos administramos os
assuntos do Estado de Israel”. Segundo ele, os direitos individuais
foram, até agora, indevidamente sobrepostos ao caráter judeu do Estado.
Eufemismos à parte, anuncia-se o fim de Israel como Estado
democrático e humanista e sua transformação em Estado confessional,
racial ou ambos. Não é novidade na região, nem implica a perda do apoio
de Washington, haja vista a Arábia Saudita, mas fortalece as campanhas
de boicote e desinvestimento no Ocidente, bem como o fundamentalismo
islâmico. Ante um Estado Judeu explícito, fica mais difícil argumentar
contra o Estado Islâmico.
*Reportagem publicada originalmente na edição 828 de CartaCapital, com o título "Rumo ao apartheid"
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