OPINIÃO: “Eu sou o cara”

Doutor em Educação, Professor Adjunto do Departamento de História da UESB e Coordenador do Laboratório Transdisciplinar de Estudos em Complexidade
Doutor em Educação, Professor Adjunto do Departamento de História da UESB e Coordenador do Laboratório Transdisciplinar de Estudos em Complexidade
por Carlos Alberto Pereira Silva
Neste momento estão ocorrendo vários eventos, preenchidos por importantes discussões, que objetivam refletir acerca da ditadura civil-militar implantada no Brasil em 1964. Certamente, muitas análises procurarão identificar diversos aspectos do regime ditatorial que ainda estão presentes no cotidiano da sociedade brasileira. È com esta intenção que, nesse artigo, eu reflito acerca da trajetória de Roberto de Oliveira Campos, um expoente do regime autoritário, cuja vida foi vinculada à defesa das ideias liberais que foram muito combatidas no século XX e hoje são acolhidas por segmentos políticos aparentemente díspares. Refletir acerca do itinerário deste homem e sobre a sua ideologia é algo fundamental porque, tendo sido muito contestado durante a segunda metade do século passado, Roberto Campos, se hoje estivesse vivo, certamente estaria contente ao ver o liberalismo sendo assumido e colocado em prática por grande parte dos seus antigos opositores políticos.

Roberto de Oliveira Campos nasceu em 1917 e graduou-se em Filosofia e Teologia. Ainda jovem, já como economista, participou da Conferência de Bretton Woods, nos Estados Unidos da América em 1944, na qual ocorreu a criação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial que se configuraram como instituições fundamentais para expansão planetária do capitalismo. De 1945 até 1964, Roberto Campos ocupou várias funções no estado brasileiro: foi um dos criadores do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, teve participação importante na elaboração do Plano de Metas do presidente Juscelino Kubitschek e, no governo João Goulart, exerceu o cargo de Embaixador do Brasil em Washington. Porém, mesmo com essa destacada e ascendente atuação, as ideias liberais, firmemente difundidas por ele, encontravam grande resistência no cenário nacional.

Naquele tempo, época de intensos debates acerca dos rumos do Brasil, o liberalismo, ideologia-mor do sistema capitalista, chocava-se com outras alternativas civilizatórias. Em contraste com as pregações dos segmentos encantados com o ideário liberal, tínhamos a atuação de correntes políticas que lutavam por transformações sociais garantidoras de maior igualdade entre os brasileiros. Descrentes da eficácia da “mão invisível” do mercado na resolução dos múltiplos problemas nacionais, comunistas, socialistas e trabalhistas, cada um ao seu modo, defendiam a adoção de significativas reformas que apontavam para a construção de um país no qual existiria ampla justiça social. Porém, mesmo com a intensidade das lutas empreendidas por estes segmentos, em 31 de março de 1964 houve uma ruptura da ordem institucional, possibilitada pela força das armas, que garantiu às ideias liberais e aos seus defensores um razoável predomínio na realidade nacional.

Naquele contexto, ainda que a vitória das ideias liberais não tenha sido completa, em razão da vigência do dirigismo estatal em várias dimensões, Roberto Campos também sagrou-se vencedor. Após o golpe civil-militar, que contou com o seu apoio, ele foi alçado à condição de Ministro do Planejamento do governo do General Humberto de Alencar Castelo Branco. A partir daqueles traumáticos acontecimentos, ancorada em ações políticas que resultaram em prisões, cassações, exílios, torturas, desaparecimentos e mortes, a ditadura civil-militar colocou em prática boa parte do ideário propagado por Roberto Campos. Dessa forma, ao unir autoritarismo político frente aos seus contestadores com liberdade econômica para os capitalistas nacionais e estrangeiros, os governos dos generais potencializaram a aceleração do desenvolvimento industrial da nação brasileira.

Naquela época desenvolvimentista, momento em que muitos acreditaram na existência de um verdadeiro “milagre econômico”, o Brasil tornou-se um destaque entre as nações capitalistas em virtude do vertiginoso crescimento do seu Produto Interno Bruto. Entretanto, esse “Brasil potência” logo desnudaria-se, ao ser encarado com uma espécie de “Belíndia”, por ter uma minoria vivendo igual aos ricos belgas e uma maioria sofrendo como os miseráveis da Índia. A partir de meados da década de 70, ao findar a euforia do “milagre”, em razão do Brasil ter sido afetado pela crise mundial do capitalismo desencadeada pelo “choque do petróleo”, a ditadura civil-militar passou a ser questionada por diversos segmentos sociais. Trabalhadores urbanos, intelectuais, estudantes, artistas, cristãos leigos e eclesiásticos, jogadores de futebol, camponeses, parlamentares, prefeitos e expressivos setores das camadas médias entraram em cena exigindo o fim da ditadura e recolocando na agenda nacional a necessidade de substantivas transformações sociais. Assim, surgem novos agentes políticos e outros, que quase foram dizimados pela ditadura, são reconstruídos. Na esfera partidária, nasce o Partido dos Trabalhadores em 1980 e os partidos comunistas – PCdoB e PCB – retornam à legalidade em 1985. No mundo sindical surge a Central Única dos Trabalhadores e a Central Geral dos Trabalhadores. Nesse turbilhão, enquanto praças e avenidas eram ocupadas por segmentos sociais que exigiam veementemente a reforma agrária, a suspensão do pagamento da dívida externa, a redução da jornada de trabalho e a tributação das grandes fortunas, Roberto Campos foi obrigado a contentar-se com um mandato de Senador, exercido entre os anos 1983-1990 por um carcomido partido, o PDS, que estava sendo amplamente rejeitado pela sociedade brasileira.

Na década de 90, época da adoção de políticas que primavam pela sacralização da ética capitalista, Roberto Campos atuou como Deputado Federal em dois mandatos. Neste período, ainda que formalmente não ocupasse lugar de destaque no cenário político nacional, ele testemunhou o estímulo à livre concorrência, a quebra dos monopólios estatais e a maré privatizante promovida pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Dessa forma, ao ver um dos seus críticos colocar em prática as ideias disseminadas por ele desde a juventude, o octogenário Roberto Campos presenciou com alegria o início da escalada hegemônica do velho liberalismo em solo brasileiro. Entretanto, como “no meio do caminho havia uma pedra”, o PT, o PCdoB a CUT, a UNE e o MST, dentre outros agentes políticos, coerentemente insistiam em combater os malefícios contidos na implementação do ideário liberal, difundido arduamente por Roberto Campos e acolhido pelo sociólogo da “teoria da dependência” Fernando Henrique Cardoso.
No início deste século, um ano antes da vitória de Luiz Inácio Lula Silva à presidência da República, confirmando a premissa de que “quem é vivo também é mortal”, Roberto Campos faleceu. Contudo, a sua morte não significou o seu ocaso porque, ainda que o destino não tenha concedido a oportunidade de ver com os próprios olhos, as ideias acalentadas por ele foram progressivamente incorporadas por seus críticos mais radicais, tanto no governo do aguerrido sindicalista quanto na gestão da brava guerrilheira. Sintonizados com os valores divulgados tenazmente por Roberto Campos, os governos Lula e Dilma foram descartando demandas históricas como a reforma agrária, a suspensão do pagamento da dívida externa, a redução jornada de trabalho e a tributação das grandes fortunas, para assumir compromissos condizentes com os princípios liberais. Por isso, agora, o que se vê são petistas, comunistas, socialistas e sociais democratas unissonamente defendendo a economia de mercado, estimulando a competição desagregadora, apostando no crescimento ilimitado da produção e incentivando o consumismo individualista.

Enfim, neste momento de reflexão acerca dos 50 anos do golpe civil-militar, podemos afirmar que, ao deparar com o inusitado deslumbramento dos seus críticos pela velha ideologia liberal, Roberto Campos, se vivo fosse, hoje estaria ironicamente dizendo: “eu sou o cara…”

Carlos Alberto Pereira Silva – Doutor em Educação, Professor Adjunto do Departamento de História da UESB e Coordenador do Laboratório Transdisciplinar de Estudos em Complexidade

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