Lutar por beijo gay na TV? Só se for beijo grego… por Nilton Luz
A campanha pelo beijo gay voltou com força total na atual novela do horário das 20h da Globo, “Amor à Vida”. Como aconteceu no final de quase todas as suas antecessoras dos últimos anos. De resultado concreto até agora, apenas a promoção da emissora e a necessidade de explicar porque alguns de nós, militantes das diversidades sexuais, não aderimos a ela.
O
casal da vez é o ex-vilão Félix, promovido a mocinho “fofo”, segundo
uma campanha pelo beijo entre ele e a “bicha burra” Nikko.
O
público telespectador das novelas da Globo é extramente conservador,
bem diferente de produções culturais de outras tevês mundo afora, e está
crescendo na TV brasileira em paralelo à expansão política e cultural
dos evangélicos no país. Félix e Nikko conseguiram um feito inédito ao
conquistá-los, o que reacendeu a campanha.
Inicialmente,
é preciso desmistificar a ideia de que a televisão é fútil. Ela ainda é
o veículo de comunicação mais influente. Como alcança todos os
públicos, direta ou indiretamente, a TV é um dos principais instrumentos
de formação das ideias sociais. Um beijo gay seria importante na busca
pela normalização de outras afetividades.
Entretanto, parece questionável se a campanha por
esse beijo gay (e não o beijo em si) é a melhor estratégia. Afinal, a
campanha tem presença no cenário político. Perder ou ganhar essa batalha
representará algo na correlação de forças e gerará reações na dinâmica
elementar da disputa política. A questão não é se o beijo gay é
importante, mas se é estratégico.
Há três razões
para duvidar. A primeira é a centralidade da agenda de democratização da
mídia no Brasil. Para entender, basta saber que outra emissora já
exibiu um beijo lésbico, mas mesmo quem tem conhecimento desse fato
reconhece que a repercussão do mesmo evento na Globo é incomparavelmente
maior. O mesmo ocorreu com a primeira protagonista negra de uma novela.
Por isso, a agenda prioritária deveria ser a democratização da mídia,
para que outras TVs possam disputar o mercado e diversificar a produção
cultural (e as ideias sociais).
A segunda é que a
campanha torna latente o atraso da TV brasileira, umas das mais
conservadoras do mundo. Diversas outras TVs da América Latina já
exibiram beijos gays e lésbicos sem grandes polêmicas. Mesmo em caso de
vitória, os fundamentalistas poderão notar a força do conservadorismo
nacional, e se souberem usar isso, a balança acabará por pender para
eles.
A terceira questão envolvida é o apelo
reducionista de uma campanha que aborde novela, um show produzido com a
intenção de exigir pouca reflexão e questionamento, abusando do
maniqueísmo e das certezas absolutas. Algumas peças de campanha
demonstram esse risco de apropriação conservadora, como o argumento de
que as novelas ensinariam violência ao invés de ensinar o amor.
Esse
é o velho maniqueísmo do bem contra o mal. Aliás, o inverso da
afirmação homofóbica de que as crianças vão “aprender a ser” gays, como
se não “aprendessem a ser” heterossexuais. Ambos os argumentos frágeis,
pois um produto cultural pode até influenciar, mas não determina caráter
– nem orientação sexual. Uma campanha pelo beijo gay precisaria ser
capaz de evitar essas armadilhas.
Há ainda
o perfil normatizador que subjaz ao apelo reducionista. Félix e Nikko
são brancos e ricos, e sofreram intervenções decorrer da trama para se
adequarem ao que a emissora permite. A campanha contribui com o
amoldamento ao exibir o casal de forma tolerável ao público, na ânsia de
conseguir o apoio popular. Se esse padrão se impuser, pode marginalizar
ainda mais outros formas de demonstração de afeto e desejo, como o
beijo por prazer e diversão. É preciso recusar a determinação de um
padrão de casal gay aceitável.
A foto de capa do CD de Tom Zé conseguiu passar pela censura da ditadura. Uma paródia perfeita contra a censura da Globo.
Arte de Hugo Mansur com frase de Dário Neto.
O
que passa despercebido é que Félix e Nikko são um casal fechativo, e
talvez tenham conquistado o público justamente por isso. Um casal de
comportamento feminino desperta o fascínio e a curiosidade heterossexual
sobre quem desempenharia os papéis sexuais comuns às relações
heteronormativas. Os casais gays e lésbicos de tramas anteriores,
submissos às normas de gênero, não alcançaram tanta popularidade. A
mensagem é simples: diferente do apelo reducionista que a Globo impõe às
novelas, o público entende e até gosta de personagens que despertem
inquietações, dúvidas e reflexões. Isso deveria ser explorado pela
militância LGBT. O exemplo foi dado pelo pesquisador Dário Neto[i], ao propor uma campanha pelo beijo grego[ii].
Por
esses motivos, alguns não aderem à campanha. Ela não é prioritária no
atual estágio da luta pela diversidade sexual, não contribui para
alterar a correlação de forças e ainda pode reforçar as normas que nos
aprisionam. Isso não significa combater a proposta. Todos defendem o
beijo gay, mas não a inclusão dessa reivindicação no topo da agenda
política.
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